• search
  • Entrar — Criar Conta

200 anos depois, chama da liberdade continua viva

Em 7 de Setembro de 1922, jornal baiano publica reportagem sobre 100 anos da Independência que Navegos republica em celebração ao Bicentenário de um fato marcante da nossa História.

* Cleidiana Ramos

[email protected]

Como era de se esperar a festa dos 100 anos da Independência da Bahia em 1923 foi apoteótica. Mas nem por isso, um ano antes, Salvador deixou de festejar largamente o centenário da Independência do Brasil. Com base nas edições de A TARDE do período de 6 a 11 de setembro de 1922 observa-se a vocação da capital baiana para transformar uma data marcante em festa com diversas perspectivas. Além dos registros das comemorações, A TARDE organizou um especial de 18 páginas sobre o centenário com os anúncios publicitários superando o bloco editorial, o que mostra o apelo que a celebração alcançou na cidade.

“Dir-se-ia uma ressurreição…. Como que a Bahia de outros tempos, a Bahia heróica, a Bahia contemporânea dos heróes da luta pela liberdade…a Bahia que ainda conservava intacta a memória dos seus grandes feitos e dos vultos que os realizaram…despertára sacudindo seus torpores e tristezas, varrendo de suas frente as rugas das amarguras que acabrunham, para oficciar no altar da pátria o culto do seu civismo inabalável”.  (A TARDE 8/9/1922, capa).

As informações distribuídas pela edição de A TARDE de 8 de setembro de 1922 registram uma extensa programação realizada no dia 7 de setembro daquele ano: às 8h30 começou a concentração no bairro da Graça para o desfile das forças militares. No meio da manhã, no Palácio Rio Branco uma recepção reuniu autoridades.

À tarde começaram as manifestações cívicas com destaque para o cortejo cívico que saiu às 15 horas do Terreiro de Jesus. Uma hora antes foi celebrado um Te Deum na Catedral Basílica. À medida que passou pelas ruas do Centro Histórico, o cortejo formado por representações das escolas e bandas militares, ganhou novas adesões, inclusive a de autoridades como o então governador da Bahia, José Joaquim Seabra (1855-1942). Na passagem pelas imediações do Palácio Rio Branco uma bandeira do Brasil com 20 metros de comprimento foi incorporada ao desfile.  O fundador de A TARDE Ernesto Simões Filho e o redator-chefe do jornal, Ranulfo Oliveira, também participaram.

“Seguraram nos cordões os srs: governador do Estado, comandante da Região Militar, capitão do porto, intendente, secretários de Estado, monsenhor governador do arcebispado, presidente do Tribunal Superior e do Tribunal de Contas, comandante da Brigada Policial, officiaes da reserva do corpo de Saude do Exercito, officiaes da activa do Exercito e da Brigada Policial, senadores, deputados, etc”. (A TARDE, 8/9/1922, capa).

Da hoje Praça Municipal, o cortejo seguiu passando pelo Mosteiro de São Bento recebendo a saudação dos repiques do sino da igreja da instituição em conjunto com o da Igreja da Barroquinha. Das sacadas das casas no trajeto, moradores, segundo a reportagem, atiravam pétalas de flores e serpentinas em homenagem à bandeira.

“Rosário a fora até o forte de S. Pedro o préstito continuou a sua marcha triumphal. O Campo Grande estava cheio. O povo abria alas por onde sabia que o cortejo ia passar”. (A TARDE, 8/9/1922, p.2).

É interessante o cuidado que parece ter sido adotado pela organização do cortejo, com Bernardino de Souza, secretário do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), à frente, para diferir do roteiro da celebração do 2 de Julho. Mas o destino do desfile conectou-se diretamente às celebrações pela Independência da Bahia: o Campo Grande. Aos pés da homenagem aos caboclos do imponente monumento, o governador J.J. Seabra proclamou o chamado juramento à pátria.

“Houve um minuto de respeitoso recolhimento. Ouviu-se então, a voz forte do sr. Seabra pronunciando o juramento, repetido pela multidão: Prometto por toda a vida amar e honrar a minha querida Pátria e pugnar por seu engrandecimento com lealdade e perseverança’“ (A TARDE, 8/9/1922, p.2).

Além de Salvador – A TARDE registrou as comemorações do centenário da independência no Rio de Janeiro, que no período era a capital do Brasil, e em cidades estrangeiras como Lisboa, Londres e Buenos Aires. Na edição de 9 de janeiro de 1922, a página três foi dedicada a essa cobertura com a observação do uso da tecnologia telegráfica para transmissão de dados à distância.

No Rio de Janeiro houve desfile naval com a participação de embarcações brasileiras e estrangeiras e a abertura da Exposição Internacional do Centenário.  A mostra que se prolongou até 24 de julho de 1923 exibiu formas de trabalho no Brasil em áreas como lavoura, pecuária, pesca, dentre outras, além das modalidades de transporte. Treze países participaram da exposição, dentre os quais Estados Unidos, Inglaterra e México.

Na página dois da edição de 9 de setembro de 1922, A TARDE registrou as festas realizadas em cidades do interior do Estado como Alagoinhas, Santo Amaro, Juazeiro, Itabuna, Canavieiras, Serrinha, dentre outras.

“Na vizinha cidade de Itaparica, em comemoração à data de 7 de setembro, realizou-se às 13 horas uma sessão magna, no Paço Municipal sob a presidência do intendente local, dr. Francisco da Costa e Silva”. (A TARDE, 9/9/1922, p.2).

Na edição de 11 de setembro de 1912, as reportagens contaram detalhes das celebrações finais ocorridas no dia anterior. Segundo a programação, foram realizados um torneio esportivo e um concerto no Campo Grande.

Registros Especiais – Ao longo da cobertura do centenário da independência, A TARDE publicou, além dos registros das festas no cotidiano da cidade, um material editorial precioso. Ele é formado por peças em linguagens variadas como a ilustração que foi utilizada na capa da edição especial do dia 7 de setembro de 1922. Nela, uma águia voa exibindo os pés libertos de grilhões. A ave segura com o bico a bandeira do império brasileiro. No canto direito da gravura está um globo terrestre com o mapa do Brasil em destaque e envolto em correntes partidas.  Essa edição tem um impressionante número de páginas totalmente dedicadas a anúncios: 14 do total de 18.

O artigo com informações contextualizadas sobre episódios que levaram à Proclamação da Independência foi assinado por Teodoro Sampaio. A página três trouxe textos sobre assuntos variados com destaque para o que narra a história da Faculdade de Medicina e uma descrição sobre o reconhecimento da Independência do Brasil em 1824 pelo Rei Ajan do território onde hoje está o Benim.  O artigo não tem assinatura, mas indica como fonte o arquivo público.

Segundo o texto, foi estratégico para o Brasil como jovem nação assegurar o reconhecimento da sua emancipação política em países da África Negra. Do hoje Benim, já chamado de Reino do Daomé, vieram, por conta da tragédia da escravidão, civilizações das quais a Bahia herdou diversos elementos culturais, sobretudo religiosos como o candomblé de nação jeje.  O texto afirma que Manoel Alves de Lima, cavalheiro da Ordem de Cristo, uma importante instituição para os interesses da coroa portuguesa em suas colônias, apresentou-se a Dom Pedro I como embaixador do Rei Ajan, que se proclamava “imperador do Benim e dos reis da África”.

Mas o reconhecimento, segundo a história contada pelo jornal tinha preço: o envio de objetos, como presentes, dentre os quais uma carruagem.

“O coronel Alves de Lima, embaixador de sua majestade o rei Ajan, imperador do Beni e dos mais reis da África chegou Rio de Janeiro com sua missão diplomática e respectiva encommenda em dezembro de 1824. Não consta que tivesse voltado ao continente negro para desempenhar a segunda parte de sua missão. É possível que naquele tempo já estivesse em vigor o prolóquio: “encommenda sem dinheiro fica no Rio de Janeiro”. (A TARDE, 7/9/1922, p3.).

A última página do especial tem um artigo sobre a importância das câmaras municipais assinado por Bernardino do Souza, secretário do IGHB e que organizou o cortejo cívico do centenário. Já os anúncios que seguem nas páginas seguintes da edição especial indicam o que estava em alta nos segmentos econômicos de Salvador no período: serviços de bancos, importadoras e exportadoras, drogarias, lojas de tecidos e viagens.

O sucesso desse especial de A TARDE ganhou referência na edição de 8 de setembro:

“Para partilharmos do jubilo nacional, preparamos com particular carinho uma edição especial, que, no consenso unanime dos leitores que nos têm felicitado por ella, honra a imprensa no Brasil. E o povo disputou esse numero nas ruas e veio em massa procura-lo até as portas da officina, arrebatando os exemplares. Apezar de duplicarmos a tiragem, a nossa edição foi toda, assim, esgotada. Tornou-se preciso mesmo, para bôa ordem da distribuição, pedir a intervenção da guarda civil para conter a multidão que se agglomerou em frente ao nosso edifício”. (A TARDE, 8/9/1922, capa).

Manuel Querino – Outro artigo interessante é o intitulado “Os homens de cor preta na história”. Publicado em uma página inteira da edição de 8 de setembro de 1922, o texto apresenta o seu objetivo:

“Notícia de alguns bahianos, de cor preta, que se recomendaram ao apreço da posteridade, por serviços prestados ao paiz, nas letras, nas artes e nas armas”. (A TARDE, 8/9/1922, p.3).

O texto apresenta 38 perfis. Alguns tem dois ou três parágrafos e outros apenas uma linha. A assinatura do artigo é de um dos maiores intelectuais baianos: Manuel Querino (1851-1923), autor de trabalhos de referência sobre a herança das culturas africanas em vários campos.

Mais uma vez, portanto, o registro da memória cotidiana, mesmo em meio a grandes eventos, como foi a celebração do centenário da independência faz o que Querino pretendeu com o seu texto de 1922: fornecer pistas para a busca de informações pelas gerações do futuro.

.A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.