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3×4 de Carlos Drummond de Andrade

Fundador de Navegos dá uma prega no tempo e nos traz aos seus leitores tal o que viu e  como viu o grande poeta do século passado em língua portuguesa. Escutava mais do que ouvia, sempre atendo ao que ficava submergido na abissalidade das palavras.

*Franklin Jorge

Riu quando lhe contei que José Augusto, como outros políticos, cultivava o hábito de prometer sem o desejo de cumprir com a palavra empenhada e que certa vez, procurado pelo filho de um correligionário que estava noivo e muito aperreado por que não tinha emprego e portanto não podia marcar a data do casamento, o procurou para pedir um, no que foi prontamente atendido e encaminhado, com um bilhete do próprio punho do governador, que dava instruções para a sua contratação.

Era já no fim do expediente e o moço, sabendo que aquela hora não falaria mais com o secretário, foi para casa e lá, abrindo o envelope, leu o bilhete e percebe que faltavam o ponto nos “is”. Ele pensou que o governador, distraído, esquecera-se de colocá-los e ele mesmo, pegando de uma caneta, resolveu corrigir o que pensou ser um cochilo. No dia seguinte, foi o primeiro a chegar a repartição para falar com o secretário, entregou-lhe a carta e de lá saiu satisfeitíssimo, já empregado.

Foi direto agradecer ao governador, que ficou muito surpreso com o desfecho da história. Imediatamente, ao ficar só, ligou para o secretário para saber por que ele não cumprira a determinação de dispensar o suplicante com a desculpa de naquele momento não dispor de nenhuma vaga. Governador, cumpri suas determinações sim. Acontece que toda letra “i” escrita no bilhete, ao contrário de outros, está pontuada. Achei, portanto, que era para empregar o rapaz em vez de dispensá-lo…

Drummond se interessou por meus exercícios de artista plástico e adquiriu um pequeno quadro meu, uma personagem do nosso Boi de Reis, que achou gracioso e alegre. Prometi-lhe que, ao voltar para minha terra lhe mandaria uma lista de apelidos, o que fiz após uma implacável pesquisa, que ele no entanto não pôde aproveitar no ensaio que planejara escrever pois eu esquecera de colocar, juntamente com o apelido o nome civil do personagem em questão, conforme explicou numa carta.

Ah, Drummond, como homem fino que era — embora facilmente irritável como dos poetas disse Horácio –, era muito gentil, ouvia cada interlocutor de cada vez e não deixava carta sem resposta, sem importar-se com com os propósitos alheios, fossem eles anônimos ou célebres, fosse célebre ou anonimo, Paulo Augusto da Silva ou seu alter-ego João Brandão. Gostava de estar sozinho consigo mesmo, pois já carregava um mundo a fervilhar na própria cabeça.

Carlos Drummond de Andrade.