*Pedro Oliveira
“Nunca imaginei que ia tê-lo em minhas mãos cinquenta anos depois”, comenta Carlos José Marques, emocionado, diante do seu primeiro álbum de serigrafias. O Roteiro Histórico e Cultural do Rio Grande do Norte, datado de 1973, nasceu como um convite da professora Sônia Fernandes Faustino ao artista. Tornou-se, assim, um projeto da Secretaria de Estado da Educação, ligado ao Departamento Estadual de Cultura, dirigidos à época pelos professores Dalton Melo de Andrade e Zilda Lopes do Rêgo, respectivamente.
A iniciativa de preservação da memória arquitetônica do Rio Grande do Norte, com um olhar especial para Natal, partia do pressuposto de que aquelas produções artísticas catalogassem os prédios e monumentos mais expressivos do nosso lugar, dando abertura para que a população pudesse mensurar o valor de cada um.
Há alguns anos, um exemplar maravilhosamente bem cuidado chegou às minhas mãos por meio da professora Lourdes Varela, entusiasta da arte potiguar. O álbum conta com vinte lâminas, que contemplam desde o Marco de Touros, mais antigo símbolo da ocupação portuguesa no território brasileiro e norte-rio-grandense (1501), até o Relógio da Junqueira Aires, representante da fusão cultural provocada pela Belle Époque em Natal. Carlos José relata que, embora as edificações fossem previamente selecionadas pela secretaria, ele tinha prazer em executá-las pela variedade de possibilidades que poderia explorar. Cada serigrafia daquela é antecedida por uma descrição historiográfica, assinadas pelo escritor e desembargador Manoel Onofre Jr.
A Santa Cruz da Bica, as igrejas do Galo, do Rosário e de Nossa Senhora da Apresentação, o Instituto Histórico e Geográfico, o Palácio do Governo, o Forte dos Reis Magos, a sede do jornal A República e o Teatro Alberto Maranhão também compõem o álbum. Com um infalível senso estético, expresso pelo perfeccionismo da técnica e pelo lirismo de suas criações plásticas, Carlos José nos lega, com essa publicação, um robusto roteiro para conhecer a fundo a história de Natal, que está diluída entre casarios e igrejas, monumentos e instituições.
Embora a proposta seja explorar o Rio Grande do Norte, das cidades do interior às do litoral, o maior número de trabalhos está entre as ruas da capital, que sempre foi a cidade mais desenvolvida do estado por hospedar as sedes dos poderes governamentais. Ainda assim, a Casa de Câmara e Cadeia de Vila Flor, as ruínas da igrejinha de Cunhaú e o frontispício do cemitério de Arez – que também ilustra a capa – têm o seu lugar de representatividade.
Com o sucesso do álbum de serigrafias de 1973, elogiado e distribuído Estado afora, a Secretária de Educação, desta vez sob a responsabilidade do professor João Faustino Ferreira Neto, deu continuidade ao projeto e publicou o segundo volume do Roteiro Histórico e Cultural do Rio Grande do Norte em 1978.
Dentre as novas inserções, que incursionam pelo interior, surgem as cidades de Martins – com o Nicho, a Igreja do Rosário e um casarão – e Extremoz – com o Busto Relicário. Sem falar de Acari e Jardim do Seridó. Além destes, aparece, em traços delicados e tons sóbrios, a escultura dos Escolares, produto da Fonderie d’Art du Val d’Osne, famosa casa de fundição parisiense. Esta peça foi adquirida em 1909 pelo prefeito Alberto Maranhão, para o Grupo Escolar Augusto Severo, na Ribeira, e, atualmente, encontra-se na Escola Estadual Winston Churchill, clamando por mãos sensíveis que lhe preservem a originalidade.
O jornalista Franklin Jorge, intelectual que também se aventurou entre tintas e pincéis, a partir de um comentário (TN, 18/03/1978) sobre a segunda edição deste álbum, define as serigrafias de Carlos José como “um atestado de sua maturidade artesanal”. Estas expressões de uma elaboração plástica bem resolvida deram o ar da graça em 1964, com sua primeira exposição individual, quando liderava o movimento dos “Novíssimos”. A partir daí, Carlinhos sempre se destacou como um dos melhores artistas de nossa cidade.
O artista
Dentro do Seminário de São Pedro, gradeado por portões trabalhados em ferro, ostentando acácias amarelas em sua entrada, o seminarista Carlos José deu início à sua produção artística, prometendo valorosos rebentos para as artes plásticas de Natal. Recebeu decisivo apoio do reitor, o Cônego Lucilo Machado, que lhe forneceu os materiais necessários para o trabalho e o apoiou na organização da “Primeira Exposição Individual de Carlos José”.
A mostra aconteceu na Galeria de Arte do Município, que ficava na Praça André de Albuquerque, quase em frente ao Patronato da Medalha Milagrosa. “Era um prédio simples, com um corredor amplo, onde realizaram muitos eventos bons”, relembra Carlinhos, de olhos fechados, como se quisesse transportar-se para o local para poder transcrevê-lo com precisão. Naquele momento, Newton Navarro, com seu inato dom da palavra, apresentou-o ao público. E Dorian Gray, por sua vez, dedicou-lhe um poema – “Em louvor de Carlos José”, que constou do catálogo da exposição.
Dentre as forças incentivadoras para a sua dedicação às artes plásticas, ele diz ter encontrado em Navarro e em Dorian Gray o estímulo que precisava, pois os dois “movimentaram a política cultural desse Estado e procuraram incentivar os mais novos”. Além disso, dedica uma emocionada fala a Iaponi. Por ser um dos pintores de sua admiração, confessa que deixou ser influenciado por ele, passando de uma pintura impressionista, que era o que fazia inicialmente com perspectiva e nuance de cores, para uma pintura de cores mais chapadas, partindo de narrativas e elementos culturais populares.
Quando criança, ainda em Bom Jesus, Carlos José tinha uma tia que morava com sua família, e ela era pintora. “Eu estava sempre ao lado dela, vendo-a pintar. Gostava muito daquele cheiro do óleo, da tinta óleo. E, às vezes, ela saía e deixava o trabalho assim, largado, quando eu aproveitava para dar umas pinceladas.” Com isso, o garoto com forte tendência a ser autodidata, passou a entender logo cedo como manejar as cores e as tintas em uma composição artística.
Uniu a experiência à sensibilidade de compreender a cultura popular como formadora de nossa identidade, e deu vida a telas de grande expressividade para o movimento das artes plásticas do Rio Grande do Norte. “Sua alta sensibilidade em idear os motivos regionais, dentro de um clima tipicamente nordestino, faz ressaltar a cor pura e viva, como elementos imagináveis de sua graça”, observa Iaperi Araújo acerca do legado de Carlos José.
O seu requinte caligráfico, que consegue transmitir o clima envolvente das festas populares e o fervor da religiosidade do nosso povo, levou-o a salões de Recife, Rio de Janeiro e Brasília. Em 1966, foi premiado nas categorias desenho, pintura e geral, na I Feira de Artes Plásticas do RN. Com isso, tornou-se possível a sua primeira individual fora daqui. Desta vez, no Centro Norte-rio-grandense na Guanabara, bem prestigiada pelos conterrâneos ali residentes. Dentre as atrações da noite, houve uma apresentação da rainha do chorinho, a nossa Ademilde Fonseca.
Sua última exposição foi em 2012, no projeto Privado é público, na gestão de Isaura Rosado à frente da Fundação José Augusto, reunindo trabalhos autorais e de seus pares, em “Carlos José e Caros Amigos”.
Embora tenha deixado muito cedo as pinturas em tela, alcançou um legado inestimável, diante de uma arte jovial e limpa, que se destaca pelo agrado à primeira vista. Ele dedicou-se, na verdade, ao artesanato que nascia das hábeis mãos de Dona Neném e encontrava a complementação nas suas. Refiro-me às peças em cerâmica que foram comercializadas na sua loja do Centro de Turismo. O famoso “Galo de São Gonçalo”, que inicialmente era ornado por arranjos vermelhos e verdes, passou pelas mãos de Carlos José e encontrou um colorido expresso por meio de flores e frutos com um viço natural daquilo que é cultivado em quintais sertanejos. Foi, por muito tempo, o souvenir mais procurado destas bandas.
Carlinhos dedicou sua vida à valorização das artes. Ao mesmo tempo que era comerciante, era servidor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e grande entusiasta do Núcleo de Arte e Cultura dali, que fora fundado por ele nos anos 1970.
Silencioso, distante das telas e das tintas, recluso de suas próprias criações, Carlos José contenta-se em contemplar diariamente, em diversos cômodos do seu apartamento, o acervo amealhado durante anos de caminhada. Disse-me, suspirando de nostalgia, que não esperava que o tempo passasse tão depressa. “Cinquenta anos já separam a gente do lançamento do meu primeiro álbum de serigrafias, por exemplo”, conclui, justificando que isso já é o bastante porque nunca vê a vida acontecer a longo prazo.