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Confidências a Woellner

Colaborador extrai do prodigioso Baú de Licânia suas leituras de poetas e revela aos leitores talentos que desconhecíamos, em trabalho que enriquece a literatura em nossa língua.

*Clauder Arcanjo

[email protected]

Irritei os olhos,

secando as lágrimas.

Feri os dedos,

contra o concreto do impossível.

Haveremos de sangrar, Adélia, por sonhar com a utopia nestes tempos de tantos floreios distópicos. Vagas de pessimismo escorrem sobre as calçadas, as janelas se eximem das rosas, e o vento ganha um sopro fétido de apocalíptica aflição. “Olhos vendados / passos na corda bamba /sobre o precipício”, bem cantou, inquieta, Lilia Souza.

Porém, apesar de todas as (im)possibilidades, nós, crentes do absurdo, ferimos o muro do impossível com lápis di-versos, nas finas pontas dos dedos. “Na pedra da estrada, /a razão do desafio.”

Lá fora, cara Adélia Maria Woellner, alguém, teimosa e credulamente, pastoreia (e guarda) o (re)nascimento do luar.

A lua

encolheu-se acabrunhada

e soltou-se no vazio.

&&&

As ancas das nuvens

estremeceram,

se agitaram e,

maciamente, deram à luz:

esbelta,

pequenina,

a lua nasceu.

— Adélia, as coisas miúdas (lembrei-me de Drummond) muito mais do que pequeninas, essas se avolumarão. As nuvens haverão de engravidar-se de sonhos, e os relâmpagos (trombetas festivas) anunciarão o agigantar dos céus. Entre chuvas e trovões, sob a luz intensa do farol novo tempo, a lua desfilará altaneira, nascitura de um novel amanhã. Se diferente ou melhor, não saberei. Sabê-lo novo e não igual ao de outrem… isso, por si só, nos fecunda.

Inspiração fecundada,

o poema nasceu.

&&&

A lua,

devagarinho,

deslizou no céu da boca

e desapareceu

na garganta do tempo,

que amanhecia.

Tu, Poetisa, com teu jeito manso e enluarado, compões a sinfonia dos quadrantes, em festival de cânticos e ofertas mil. Em teus versos, a lua sempre desponta, pois ela te acompanha as rimas, como se em noite de festa cheia.

Certos poetas amanhecem (e dormem) grávidos de luares. Lua, luou, luarou ou luaremos? Depende da força do poema, há verbo-lua para quem se dispuser a deixá-la pousar (e morar) no céu da boca.

Como pode

o vazio

gritar tão alto?

&&&

E o nó entala na garganta,

engasga, afoga, maltrata…

É de dor que não se aguenta,

que atormenta, mas não mata.

A dor se chega, quebra as vidraças de nossas janelas, entra em casa, se mete por entre os lençóis, levanta-se… e mexe em nossas panelas. Quando mal damos por sua presença, Adélia Maria, ela já se irmanou com as horas e põe (e dispõe de) nossa agenda.

De manhã, entala a garganta no café amargo. À tarde, afoga-nos nas mágoas mais descabidas; e, na volta que a noite dá, se abanca e atormenta, como dona cruel de nossa vida. Não mata, mas atormenta de… dar nos nervos.

&&&

Tenho a alma enrugada

de cansaço inútil,

porque sem lutas.

Julgamos nosso cansaço inútil, ó dama de alma enrugada, porque fomos educados no utilitarismo dos músculos. Na valia suprema do pão com o suor do próprio rosto.

Não haveria um pão de nuvens? Um bolo de sonhos? Uma plantação de utopias e de esperança? Um capinar de tristezas, um debulhar de agonias? Se por acaso tais coisas existem, nossos frutos advirão de tão singular lida.

— E em Licânia?, tu me testas.

Em Licânia, Adélia, como em toda província do mundo, os poetas trabalham na calada do poema. Solitariamente, profundissimamente sós. Sem deixar vestígios, a não ser o arfar de uma rima na asa aflita de uma borboleta temporã.

Sou feto encolhido,

dobrado no meu medo.

E não quero nascer.

&&&

Deitada na areia,

sou entrega absoluta:

me deixo penetrar

pelo cheiro

da água salgada

e me desmancho

em maresias…

Quando conheci o mar, não pude traduzir tanta grandeza. Somente décadas depois, a literatura salvou-me de tamanho embaraço: “Desmundo!”.

Sim, tanta água (e em ondas) era para mim, cabalmente sertanejo, um desmundo. E tal palavra me salvou!

Minha emoção

é um cavalo rebelde,

de pelos ruivos

e olhar de jabuticabas maduras,

que não quer ser domado.

Só quem doma uma potente poetisa é o arreio do poema. A rima põe esporas nas palavras, o verso pula, empina o lombo ruivo e nos inferniza, a estrofe corre solta no prado da agonia, e o poema…. cansado de lutar, entrega-se furioso, como um animal rebelde e domado.

E quem olha de fora apenas se alumbra.

Estremeci,

porque a lua,

de tão esplendorosa,

fez ruído

ao nascer…

&&&

Na areia

vitrificada,

úmida de mar,

espelhando nuvens,

pisei de mansinho,

porque andava no céu…

Certa tarde, eu andava distraído na areia mais limpa do meu rio, quando ouvi o som dos pedregulhos. Baixei, então, a face lívida para investigar o acontecido.

Deu-se um milagre inaudito: no brilho vítreo das pedras de Licânia, eu vi o céu na terra. Neste milagre, tu podes crer, pois eu dele fui testemunha e, nele, tenho fé e acredito.

Aprendi a tocar

os tambores da minha essência.

No batuque dos meus poemas, toco-me e traduzo-me. Se não consegues compreender o meu dialeto, a minha poesia ainda não é tua.

Em rituais atávicos,

os sons

despertaram meus enigmas.

Enigmática província minha, dependurada no fio da memória tão rebelde, só se entrega em lapsos momentos de sonho, em que o mel me escorre da boca, e eu, teluricamente… acordo.

Vai, poeta!

Solta as amarras do teu barco,

iça as velas da emoção

e singra, livre,

o mar azul do céu.

Navegantes, somos todos dos poemas de mares ainda não navegados.

Soltaremos as amarras de um novo barco; içadas as veladas e infladas de emoção, singraremos, escravos da palavra, o mar azul da poesia.

Navegaremos, não temas o Bojador, sem bússola nem timão.

Em algum lugar

deste infinito mistério

— que é meu ser —,

a emoção primitiva

brilha

e reflete

a memória de todas as eras.

&&&

Dói mais

a dor quieta,

sem gemido…

E tal constatação, Adélia, é que me conforta. O descoberto pela poesia faz-se bálsamo para o ferimento da sina. E, com o gemido a nos embalar, a quieta dor mais se aquieta, como se se apiedasse do penitente escolhido.

Mergulhei num mar de sonho

e me fiz azul.

 Batizei-me…

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Tempo de escolhas, de Adélia Maria Woellner. — Curitiba: Edição do autor, 2013.