*Renato Medeiros Jota
O gênero tanto do cinema, literatura e hq de Terror é majoritariamente dominado pela visão masculina. Entretanto, revendo os fatos escritos ou imaginados podemos perceber que o olhar feminino não se deixou de fazer presente no gênero. Considerando, por exemplo, a literatura podemos perceber a figura fantástica que colocou Lord Byron, John William Polidori e Claire Clairmont em estupefação diante da criação e força imaginativa da jovem Mary Shelley com o seu Frankenstain: o prometeu moderno. No cinema o filme “Quando chega a escuridão” de 1987, escrito e dirigido por Kathryn Bigelow trouxe um novo olhar sobre o tema do terror. Já nas hqs temos quadrinistas que representam muito bem o terror em suas obras como, por exemplo, a roteirista desbravadora brasileira Maria Aparecida Godoy ou Cida Godoy.
Ela trabalhou em quadrinhos como Calafrio e Mestres do terror abordando temas folclóricos, explorando o medo e superstições do horror rural brasileiro (hoje em dia ganhou o nome de Folk Horror) sendo uma das roteiristas mais atuantes nesse gênero. Outra quadrinista que se destaca por seu foco no Terror é Roberta Cirne. Seu interesse por pesquisar e escrever sobre os horrores de Pernambuco, considerada a cidade mais assombrada do Brasil, é a principal motivação de suas hqs que transitam sobre o horror psicológico e visível sem perder de foco o aspecto do susto inerente a tradição do gênero. Outras como a Dupla Larissa Palmieri e Joane Barros e Carvalho, ambas, responsáveis pela hq “Elusiva” da coletânea VHS, mostram que o terror não é e nem deverá ser território exclusivo dos homens. Pelo contrário o gênero é espaço democrático onde o diferente deve convergir com o único intuito de contar uma boa história de botar medo em quem leia e isso é totalmente alheio a sexo ou gênero.
É notório aqui fazer uma reflexão sobre o assunto já que no fechar das cortinas no show de horrores, os espectros voltam a assombrar a nação com um grau de autoritarismo representado por posições ideológicas e políticas que escaparam dos porões de um fascismo oculto numa parte do povo. Ou seja, quando pensávamos que antigos fantasmas como o machismo, o racismo, o comunismo e tudo o que tenha “ismo” no fim da palavra, estava superado, eis que esses assuntos voltam a tona. Desta vez por uma equação perigosa, de um lado o ódio a minorias e pautas que objetivam o respeito e a dignidade a uma camada da sociedade frágil, desprotegida pelo direito estatal e do outro, uma pandemia que pós a nu a baixeza moral e humano de um povo.
Deixamos de ser um país do samba, futebol e carnaval para nos tornarmos o centro do fascismo institucionalizado, onde preconceito e ódio generalizado ao próprio povo por aqueles que odeiam minorias, que vejam só, são minorias. Tornaram a própria convivência familiar e social impraticável. Nesse panorama o terror parece nem ser algo tão assustador quanto a realidade, e aí que reside o grande desafio das escritoras e ilustradoras do tema. O que fazer para conseguir suplantar tal realidade?
O desafio é enorme e mais ainda para as mulheres que gostam do gênero de terror. Imaginar uma formula que fuja do comum e cause um novo impacto no leitor de literatura, cinema e quadrinhos brasileiro é o grande desafio. Reconheço que competir com a realidade não está fácil, os desafios são inúmeros e muitas vezes exigirá um esforço artístico e de imaginação capaz de superar os desafios presentes. Entretanto, as produtoras de hqs de terror já estão calejadas por superar desafios em nosso país, só o simples fato de ser mulher já é um desafio por si mesmo. Nesse sentido, penso que temos muito que ficar atentos a produção das artistas do país.
Pois bem, no momento me reservo a escolha de falar sobre a obra de uma artista que vi e admiro o trabalho, principalmente com o foco no gênero de terror, incorporando elementos do horror psicológico a sua arte e a forma de expressá-la, me refiro a artista Cristal Moura. Além dos quadrinhos Cristal é Professora de artes, ilustradora, tatuadora e Toy maker. Considerando todos esses interesses artísticos os temas, geralmente abordam o sombrio e o assombroso do universo do terror.
É inegável que o gênero terror influência o traço de Cristal Moura. Isso pode ser visto em obras como em Horas Escuras de 2018 colaboração com o seu esposo, que possui na terceira parte da hq, a arte de Cristal e lembra as antigas xilogravuras encontradas em cordéis que evoca a estética do sertão gótico. Herança, talvez da poesia decadentista de Alphonsus de Guimarães e Cruz e Souza, que representam essa falta de perspectiva dos personagens por uma possível salvação através de sua arte. Já em Insonho de 2019 também feito com Leandro, seu esposo, publicação Independente, podemos ver uma mistura de temas muito comum nos filmes e quadrinho de terror, a saber, a mistura do fantástico com ficção cientifica.
O traço de Cristal nos dois casos é mais claro e trabalha com o teor singelo da trama: um aparente trauma de medo do escuro, muito comum na infância, evolui para um terror subjetivo/surreal terminando, por fim, em uma reviravolta interessante. Em Maldito Sertão de 2017 podemos notar pela a primeira vez, a marcante estética de xilogravura por Cristal para contar uma história do diabo. Isso certamente “casa” com a ideia do Terror interiorano, chamado de Folk Horror localizado no campo, com seu diabrete preso na garrafa algo muito semelhante a obras que contem relatos populares como As mil e uma noites, onde o djin (também um demônio preso em uma lâmpada que atende a três desejos), brinca com o folclore local e horror regionais.
Cristal consegue exprimir em sua simplicidade, utilizando os requadros como moldura para contar a história, estabelece um grau de familiaridade que só aumenta a sensação de ruina da família que é obsidiada pelo diabo. Esse traço da artista, futuramente na obra citada acima, Horas Escuras ganhariam contornos mais pesados de um negror semelhante a craúna.
É muito bom perceber o crescimento dessa artista, Cristal tem um futuro promissor e consegue transitar por outras obras como na coletânea de VHS que faz páginas impressionantes como em Carpe Diem que transitam por um surrealismo, muito parecido com um delírio de alguém surtado, retratado tal estado nos requadros que ganham aspectos psicodélicos e vivos. Um desenho e arte final da artista evoluíram, trabalhando de maneira equânime, o branco e o preto para passar a sensação exata do sentimento que procura extrair do leitor.
Finalizo aqui minha analise dessa artista do terror que admiro na esperança de ver mais hqs feitas por ela com o seu traço destacado e marcante. Abração a todos.
As obras podem ser adquiridas com os autores através de suas redes sociais instagram @leander_moura e @cristalmoura, pelo site Gibizada e Facebook @Leander Moura
Maldito Sertão
Autores: vários, Editora Jovens escribas, 2017 pág. 132 – R$ 45,00
Horas Escuras
Autores: Leander e Cristal Moura, Editora: Jovens escribas, 2018 pág. 64 – R$45,00
Insonho
Autores: Leander e Cristal Moura, Independente, 2019, pág. 32 – R$ 25,00