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A banalidade do mal supremo

Advogada e editora da publicação Judiciário em Foco, traz a discussão uma questão que aflige o povo brasileiro e faz do Brasil uma Republica de Bananas.

*Katia Magalhães

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Com a chegada do final do ano e a redução gradual no ritmo das atividades diárias, convido você a um exercício especulativo. Suponhamos que, por uma conjunção de fatores aleatórios, chamados por uns de curso da História e, por outros, de milagre, a ordem vigente viesse a sofrer uma reversão radical. Suponhamos ainda que, após tamanha reviravolta, práticas atualmente aceitas pela maioria, tais como censura, confisco indevido de receitas, invasão de privacidade e entrosamento de magistrados com políticos poderosos, e mesmo com os “amigos dos amigos” destes, viessem a gerar comoção social, sendo, então, submetidas à apreciação do Senado federal, ou, na inércia deste, de um tribunal isento a ser constituído, ou até de uma jurisdição estrangeira.

Assim, poderíamos eventualmente deparar com a condenação de togados, e, frise-se, à luz de normas existentes. Basta ler o Título XI do nosso Código Penal sobre os Crimes contra a Administração Pública e comparar condutas lá descritas com certos fatos rumorosos do noticiário recente[1]. Sei que o cenário soa inusitado, mas, diante da excepcionalidade de tudo o que já vivemos, me permita, caro leitor tolerante, um espaço para divagar um pouco, sem acusar uma ou outra figura do que quer que seja, mas deixando fluir o pensamento pelo livre universo do imaginário, em um inocente treinamento da intelecção.

Nas hipóteses de punição de magistrados de cúpula, me pus a indagar o que ocorreria com toda a cadeia de executantes de suas determinações visivelmente ilícitas, como, por exemplo, os agentes da Polícia Federal que promoveram medidas de busca e apreensão em endereços de empresários ditos “golpistas”, em obediência a uma das decisões judiciais mais teratológicas dos últimos tempos, comentada aqui. Enquanto bacharéis em Direito e servidores da administração pública, os agentes teriam a prerrogativa e até o dever de recusar-se a cumprir tal ordem manifestamente ilegal, em uma insubordinação que encontraria amparo tanto no Estatuto dos Servidores Federais quanto no próprio Código Penal, como discutido em texto da juíza Ludmila Lins Grilo.

Em outros tempos, o tema já intrigou Hannah Arendt, filósofa alemã radicada nos Estados Unidos. Refiro-me ao famoso Caso Eichmann, cujo julgamento, em Jerusalém, por crimes relacionados ao holocausto durante a 2ª. Guerra, foi acompanhado pela pensadora, como correspondente do jornal norte-americano New Yorker. A compilação dos apontamentos de Arendt rendeu a publicação de sua controversa obra Eichmann em Jerusalém, uma detalhada reflexão sobre os principais aspectos jurídicos envolvidos no assunto, incluindo considerações de direito processual, direito penal e direito internacional público, sobre todos os passos do regime hitlerista até a chamada “solução final”, ou, sem eufemismos, o extermínio de judeus, e sobre os valores éticos que, no seu entender, norteavam o réu, os grandes generais nazistas (por ocasião do julgamento de Eichmann, já condenados pelo tribunal de Nuremberg), os juízes e as testemunhas do caso, e até diversas lideranças judaicas.

Mas, afinal, qual era o papel de Eichmann em toda aquela arquitetura da destruição? Descrito por Arendt como um tipo medíocre e colecionador de fracassos desde a escola, o rapaz, premido pelas agruras do desemprego até 32, ingressou na SS, onde, contudo, não alçou voos para além de uma patente como tenente-coronel. Sujeito falastrão e compulsivo no vício de vangloriar-se de feitos alheios, Eichmann, encarregado, no período nazista, do transporte de judeus, respondia à acusação de genocídio por meio da reiterada assertiva de que jamais havia matado um judeu e, pelo contrário, de que interagia bem com a comunidade hebraica.

Porém, na visão de Arendt, aquele não era um monstro, senão um palhaço, embora tal observação passasse despercebida ao grande público, diante do enorme sofrimento causado a milhões de seres humanos por Eichmann e seus iguais. Nas palavras da filósofa, Eichmann perdera, ao longo dos anos, a necessidade de sentir o que quer que fosse, pois, enquanto cidadão, cumpridor de seus deveres, obedecia à nova lei do país, baseada apenas nas ordens do Führer. Durante um de seus interrogatórios, Eichmann afirmara que havia pautado toda sua vida nos preceitos morais de Kant, o que se mostrava contraditório, na medida que, conforme salientado por Arendt, a filosofia moral kantiana era estreitamente relacionada à faculdade humana de emitir juízos, excluindo, portanto, qualquer obediência cega. No entanto, o que poucas pessoas notaram, dentre elas Arendt, foi que o regime hitlerista não havia apenas descartado o princípio kantiano, como o havia, sobretudo, deturpado, transformando-o na seguinte fórmula perversa: “aja de tal modo que, se o Führer tomasse conhecimento da tua ação, ele viesse a aprová-la.”

No post scriptum à obra, Arendt se permitiu fazer seu próprio julgamento definitivo de Eichmann, sustentando que não se tratava de um Iago, de um Macbeth e, muito menos, de um Ricardo III, pois nada mais alheio ao temperamento de Eichmann que tomar uma deliberação de fazer o mal por princípio. A título de exemplo, Arendt afirma que dificilmente Eichmann viria a assassinar um superior seu para ocupar o lugar deste, inclusive devido à sua falta de imaginação para tramar tal artimanha.

Segundo a filósofa, foi a mera ausência de pensamento, e não qualquer laivo de estupidez, que levou Eichmann a tornar-se um dos maiores criminosos de seu tempo. Se, por um lado, o agir do réu se revela “banal”, sem um traço sequer de profundidade demoníaca, por outro tal premissa nem de longe implica dizer que se tratasse de uma conduta corriqueira. Tirando suas lições a partir do julgamento em Jerusalém, Arendt concluiu que foi o enorme distanciamento de Eichmann da realidade, a ponto de privá-lo da própria capacidade de pensar, que acarretou um mal bem maior que a reunião de todos os instintos malévolos possivelmente inerentes à natureza humana.

Ausência de pensamento, obediência cega, temperamento burocrático do funcionário bisonho que não se permite gastar um segundo em elucubrações simples, antes de dobrar a espinha e proferir o usual “sim, senhor”. Aqui, estamos de volta aos nossos policiais, sem os quais Moraes e companhia não conseguiriam implementar seus arbítrios na realidade prática, da mesma forma como o Führer e companhia não teriam levado a cabo sua “solução final” sem um Eichmann. Se você enxerga algum exagero na afirmação anterior, tenha em mente que as situações podem até diferir em gradação, mas não em essência, pois ditaduras se formam e consolidam a partir dos abusos como os que temos observado na rotina dos tribunais superiores.

Um dos grandes desafios da reconstrução da Alemanha não foi apagar a lembrança dos chefões nazistas, mortos e/ou condenados em Nuremberg, mas lidar com o esvaziamento das mentes dos milhares de “Eichmann” país afora, sem falar nos integrantes de organismos paraestatais, como a imprensa e a academia, todos contaminados pelo hábito de repetir as ordens do Führer como meros ventríloquos. Entre nós, onde os protagonistas do autoritarismo estão bem vivos e cada vez mais ativos, e onde nossos Eichmann tupiniquins dificilmente serão acometidos por crises de consciência relativas à legalidade das ordens por eles executadas, parecemos bem distantes de perspectivas minimamente verossímeis de mudança na ordem das coisas. Mas, ainda assim, nós, indivíduos livres, seguimos pensando, e usando o intelecto como maior ferramenta para incomodar nossos soberanos, mostrando-lhes que nem todos no Brasil são Eichmann. Felizmente, por aqui, ainda há pensamento pulsando, para maior desolação do establishment autoritário!