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A batalha perdida da infância

Escritor de língua espanhola passeia por sua infância e se depara com a desolação que resulta de perdas irreversíveis.

*Enrique Vila-Matas

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A herança do horror marcaria o declínio da infância e da genialidade. Com meu primeiro passo no deserto e a descoberta da realidade, tudo mudou, e nunca parou de mudar e, além disso, piorar. Avançar pelo deserto da vida serviu para verificar que no final não resta mais nada de pé do nosso mundo, do cenário que era nosso, da nossa querida rua Rimbaud, lá onde estava todo o nosso mundo, e agora simplesmente é não.

Nada, quase nada permanece. Ontem voltei ao Passeig de Sant Joan, voltei ao caminho que fiz mais vezes na minha vida, e isso me ajudou muito a construir meu próprio mundo literário. Eu a sei de cor, mas ela só sobrevive lá na minha memória, na minha memória, já que aquele caminho mítico e fundacional da casa à escola foi muito transformado. Eles o mudaram conscientemente, e não precisamente para melhorá-lo. Onde ficava o portal de luz subaquática, hoje há apenas um novo porteiro que naturalmente não me conhece e pergunta por que olho tanto para ele e para o portal. Quanto ao que era minha casa, hoje é a coisa mais próxima -outra metáfora da infância- daquela casa desolada de que fala Dickens.

O misterioso castelo permanece de pé, hoje o centro cultural de um banco catalão. E as cercas da igreja escolar também continuam, tão afiadas – como se fossem lanças – hoje como em tempos de guerra.
Do resto dos elementos-chave do meu mapa literário, da minha rua Rimbaud, não restam sequer vestígios. O cinema chileno hoje é um vulgar «estacionamento». A antiga livraria é agora a barulhenta Poppys. E quanto ao boliche abandonado, os velhos ecos republicanos deram lugar a uma homenagem fúnebre e brega ao dinheiro: um banco provinciano soberbo e cinza, em crise.

Um panorama estranho para depois daquela batalha perdida na vida, que é a infância. Alguém disse que envelhecer tem sua graça, que é o mesmo que aprender a dançar quando jovem, curvando-se a um ritmo mais inexistente que nossa inexperiência. Talvez. Envelhecer também tem suas vantagens – e William Carlos Williams já disse que o rebaixamento seduz como seduziu a promoção – e, por exemplo, a capacidade de desfrutar de Cervantes pode equilibrar a capacidade perdida de jogar com soldados de chumbo. Por outro lado, não vamos mais à escola nem acordamos no meio da noite assustados com o barulho seco do vento. Envelhecer pode ser engraçado, mas também é verdade que envelhecer serve para provar que caminhamos e que o tempo caminhou conosco, Rua Rimbaud, só podemos ver uma velha estrada em que o tempo, às portas do deserto, escreveu o fim abrupto do nosso mundo, do mundo.

Rua Enrique Vila-Matas

Rimbaud

Foto: Enrique Vila-Matas quando jovem