*Alexsandro Alves
Uma moça transsexual, de nome Ester, foi assassinada de maneira brutal domingo, 14 de outubro. Ela e seu assassino se encaminharam em direção à policlínica do conjunto Santa Catarina. Àquela hora da noite, a escuridão domina o local, sobretudo na entrada localizada na subida da Rua Florianópolis, cujo portão quase sempre está enferrujado e aberto. Esse portão dá acesso aos fundos da policlínica, local onde há muitas árvores, lixo e um pequeno morro. Nesse morro, travestis e prostitutas fazem seus programas noturnos. Os arredores, aliás, são locais de intenso movimento nesse sentido. Ester tinha apenas 15 anos. Oriunda de Olinda/PE, de uma família humilde e preconceituosa, Ester chegou a Natal e permaneceu na rua, até encontrar algumas outras travestis, adultas, que lhe ofereceram casa e proteção. Seu assassinato deu-se por facadas e, por fim, decapitação, também foi-lhe arrancado um dedo. O assassino percorreu a Estrada da Redinha, com a cabeça em punho, até Genipabu, onde arremessou-a em um cacimbão.
Em uma entrevista, a escritora Clarice Lispector comentou que, certo dia, ao pegar um táxi em Recife, o motorista ouvia o programa “Bandeira 2”, programa de notícias policiais, semelhante ao potiguar “Patrulha da Cidade”. Nesse dia, uma notícia chamou a atenção da escritora. Um jovem, negro, foi assassinado pela polícia. Foram 13 tiros. Isso impressionou Clarice, que tentou descobrir a motivação para tanto ódio. E foi exatamente quando surgiu-lhe a palavra “ódio”, que a escritora encontrou a resposta. “Uma só bala bastaria. Todas as restantes foram de ódio”, concluiu, aterrada, a grande Clarice.
Provavelmente, o assassino da jovem Ester desferiu-lhe facadas até a morte antes do ato final de decapitar a jovem. Essa parte é a parte do ódio. E o ato de cortar a cabeça também tem um simbolismo. Entre várias tribos indígenas brasileiras, por exemplo, nos diz Eduardo Viveiros de Castro, comia-se a cabeça do oponente para adquirir a força e a inteligência do mesmo. Nos mitos antigos, a cabeça decapitada possuía tanto poder ou ainda mais, do que quando estava com o corpo, sofrendo as limitações do mesmo. A cabeça de Medusa, coroada por serpentes, está na égide de Atena, deusa da inteligência, da sabedoria e da civilização, com a qual tem muitas semelhanças. Atena é chamada, em alguns mitos, de a “Serpentina”; também o grito de guerra da deusa e o grito de horror da górgona são os mesmos, aliás, esse grito guerreiro da deusa era entoado pelos guerreiros em combate exatamente para petrificar o inimigo. Na “Ilíada”, o escudo de Agamenon é adornado com a efígie da górgona. A cabeça simboliza a força e o valor do adversário. Atena e Medusa são duplos, no sentido de Antonin Artaud. Uma manhã, quando Atena, impressionada com sua nova criação, a flauta, a tocava na beira de um lago, olhava-se refletida nas águas enquanto sua música ecoava pelo bosque. Zéfiro, o vento oeste, sempre ciumento, ficou irritado porque a melodia da flauta soava mais agradável do que o assobio do vento entre as árvores. Insatisfeito, resolveu revelar para a deusa uma outra face que a mesma desconhecia que possuía. Zéfiro soprou na beira do lago onde Atena, tranquila, se admirava tocando sua flauta recém-criada. As águas se turvaram e a efígie da deusa mostrou-se aterrorizante, uma mulher com cabelos de serpente tremulava ante o espanto de Atena. Para sempre horrorizada com a flauta, nunca mais a tocou.
O assassino de um homem homossexual ou de uma mulher transsexual é sempre um mascarado. Assim com a própria cabeça decapitada, em muitas culturas antigas, também é uma máscara. São famosas as máscaras de Medusa nos vasos e relevos gregos. Mas essa máscara não esconde, ela revela. A categoria de ódio executada pelo assassino de Ester, é o ódio de si. É o ódio de reconhecer no outro a coragem que lhe falta a si mesmo. Também é uma tentativa de negar o que se é. É uma máscara que esconde outra máscara. O dedo decepado de Ester aponta para lugares inconfessáveis. Ele caminhou pela Estrada da Redinha com a cabeça que petrificou sua covardia, com a cabeça que o fez ver seu duplo refletido, e assim, arremessou-a em um cacimbão, nas águas, espelho da alma.