Luiz Melo
Cascudo une profundamente o popular e os caminhos eruditos numa obra monumental. Devedores; uns seguem satisfeitos e conscientes de sua pequenez ante o obelisco; outros, a todo custo intitulam-se comicamente como discípulos de um mestre visivelmente inalcançável.
Expondo os floreios dessa classe de alunos supostamente maiores que seu professor, em “ Cascudo sem discípulos”, artigo integrante de sua obra inédita “Cascudo no Planeta Hemp”, o escritor Franklin Jorge demonstra as tentativas mambembes de parte da suposta rede de intelectuais provincianos em tentar comprovar, sem fontes ou provas plausíveis, sua estreita relação com o mestre e seu suposto e irrefutável discipulado.
Leiamo-lo:
Cascudo sem discípulos
Franklin Jorge
Todos já fomos surpreendidos com afirmações que seriam cômicas, não fossem emitidas com aparente seriedade, por articulistas pouco informados acerca de questões que se lhes deparam no exercício da opinião.
Frequentemente, quando tratam de pessoas que exploram a cultura popular como assunto privado, cometem equívocos e erros de avaliação que depõem contra aqueles que, de boa-fé, pretendem exaltar.
Muitos insistem em nos imprimir este ou aquele nome de folclorista, como sendo de legítimos sucessores de Luís de Câmara Cascudo, exaltação inócua e inverossímil, na qual desacreditamos mal se faz anunciar em artigos laudatórios que no jargão das redações chamamos de “enchimento de linguiça”, enfim, algo inteiramente sem importância, que se faz pela urgente necessidade de preencher espaços vazios em páginas de jornais.
Ora, qualquer leitor que conheça o universo provinciano e não seja parvo de nascença, sabe perfeitamente que Cascudo não deixou sucessores, além do que toda comparação perde o sentido quando não está apoiada em dados confiáveis.
Chego até a ir mais longe, acrescentando que ele sequer deixou discípulos, o que nos levaria a admitir a existência de pesquisadores, além de qualificados, fornidos de algo mais consistente do que a mera boa intenção ou vaidade de se fazer notar, embora sem mérito, que entre nós prolifera como mata-pasto e esclarece, duma maneira por vezes ridícula e exaltada, o questionável espírito provinciano que domina os setores da inteligência.
Um sucessor de Cascudo seria em princípio uma pessoa aparelhada de uma profunda ciência capaz de superá-lo. Segundo a tradição corrente desde os tempos imemoriais, sabe-se que um discípulo é obviamente alguém que se preparar para ultrapassar o mestre, como prova de que aprendeu a ampliou o conhecimento, o que em resumo significa dizer, em prosa vulgar, que os verdadeiros discípulos são tão raros como cisnes negros.
Ademais, exalta-se Luís da Câmara Cascudo pelo que há nele de menos relevante – o folclorista – não obstante ser ele, como tal, um nome de merecimento universalmente reconhecido. A verdade é que ninguém ainda o superou, em profundidade e abrangência de conhecimento, nesses estudos ditos do folclore, a que ele atribui a grandeza e uma objetividade de que os demais, em sua maioria diluidores, são carecidos, algumas vezes por lhes faltar a necessária erudição e, por que não dizer, o talento e a persistência necessários para ir buscar e exprimir o pensamento com suficiência de conhecimento e, por que não, estilo.
Cascudo a Richard Wagner, para citar dois exemplos distante, no espaço e no tempo, mergulharam no estudo da cultura popular, na condição de autênticos criadores dotados de excepcional talento para observar, analisar e interpretar as fontes pesquisadas; este para criar uma música lírica que traduz o que existe de expressivo e maravilhoso na obra e no espírito dos seres humanos que plasmaram a Alemanha; aquele, para fundir em profundidade o popular e a erudição numa obra canônica da qual somos todos devedores, mesmo quando não o admitimos a grandeza de Cascudo.
Nenhum dos dois criadores e mestres, seja Cascudo ou Wagner, procedeu servilmente, apenas copiando e difundindo cantigas de boi-bumbá ou lieds produzidos anonimamente pelo povo alemão. Ambos chegaram montados no talento, mas também amparados e fortalecidos numa sólida grade de estudos multiculturais que fizeram deles o que são – mestres e faróis, na elementar acepção baudelairiana.
Este é o diferencial cascudiano que incomoda e exaspera a inveja e o ressentimento de ruminadores sem pasto, como um fato digno de nota: o seu processo de criação se reporta não apenas as brumas mitológicas da brasilidade, mas ao triunfo sobre o ceticismo e o marasmo que corrói tanto quanto a ferrugem e a maresia.
Luiz Melo – Pesquisador e organizador do livro “Cascudo no Planeta Hemp” do escritor e jornalista Franklin Jorge.
