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A casa de Dona Gena

Há quem afirme que as velhas casas têm alma. Esta, sobre a qual falarei, certamente tinha e duma espécie que nos fazia esquecer todo o mal que há mundo. tratava-se um solar já bicentenário, no chamado Quadro da Matriz, onde a tradição tinha nome e sobrenome. Refiro-me à casa de Dona, que ali viveu por mais de 70  e morreu na mais extrema penúria, abandonada pelos seus, após ter conhecido tempos melhores. Para mim, quanto adolescente – costuma passar férias lá – seria a entrada do paraíso. sobretudo pelo paraíso de papel que era a sua bem escolhida biblioteca, que algumas vezes, ela e eu, líamos em voz alta ou em dueto.

*Franklin Jorge

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Disse Virginia Woolf que nos deixamos conhecer por nossas casas. Escrevendo sobre a casa de Carlyle, parecia-lhe, no caso dos escritores, que eles realmente se imprimem em seus pertences de modo mais indelével do que as outras pessoas. Lendo-a, lembrei-me imediatamente da casa em que, por quase setenta anos, a escritora Maria Eugênia Maceira Montenegro viveu no Açu, a partir de 1938 até sua morte em 2006. Um aristocrático casarão duplamente centenário, na Praça Getúlio Vargas 19, de elegante fatura colonial, em perfeito estado de conservação e ainda ostentando na fachada a bela azulejaria portuguesa da época. Enobrecido pela história e pela luz que emanava de cada gesto da grande memorialista e etnóloga mineira que se tornou norte-rio-grandense ao mudar-se para cá em 1938.

Conheci esse solar intimamente, desde os meus catorze anos, nele passando algumas férias inesquecíveis, em especial a de 1976, quando acabei colaborando com a implantação da biblioteca pública de Ipanguaçu, criada por Dona Gena, então a prefeita daquele município vizinho. Fiquei responsável pela relação complementar de títulos a serem adquiridos para enriquecer o acervo básico doado pelo Instituto Nacional do Livro, na época, detentor de um rico e variado catálogo de autores nacionais obrigatórios em qualquer biblioteca digna desse nome. Atualmente esse acervo, surrupiado com a complacência de seus sucessores, tornou-se posse de um particular que não despendeu um centavo para adquiri-lo, além de privar o povo de Ipanguaçu do seu usufruto.

Foram noites e noites, em torno da sólida e comprida mesa de jacarandá da sala de jantar, em meio a uma fina e preciosa coleção de porcelana chinesa, exposta em armários envidraçados que haviam pertencido ao doutor Pedro Amorim, médico e deputado que fora casado com uma tia do dono dessa casa senhorial. Os móveis escuros, pesados, em espécimes vegetais já extintos, mesclavam-se a outros mais recentes, em estilo funcional inspirado no Bauhaus alemão, muito em voga no Brasil nos anos cinqüenta. Nas paredes o velho relógio-cuco que pertencera ao seu pai, o buffet, cadeiras de balanço nas quais sentávamos para ver televisão, sofás e os quadros pintados pela escritora, antes de sua eleição a prefeita, a grande janela aberta para o jardim interno com o viveiro cheio de pássaros.

Após os noticiários e da novela das oito, Dona Gena colocava um clássico na vitrola, pois ela os possuía em profusão e sob a regência de grandes maestros e virtuoses, ali ficávamos, os dois, durante horas, discutindo e anotando títulos e autores que não podiam faltar à Biblioteca João Lins Caldas – um dos maiores poetas da língua portuguesa, que fora o seu mestre e a quem ambos admirávamos e servíamos voluntariamente em estado de júbilo.

Não poucas vezes fomos dormir depois das duas horas da madrugada, após um chá ou chocolate quente acompanhado de queijo-do-reino, pães, roscas, bolos e biscoitos deliciosos feitos por Rita, magra e sorridente, que aprendera as artes culinárias com a própria Dona Gena, a quem servira no tempo de moça. Saboreávamos, nesses momentos, um pouco da rica culinária mineira transplantada para o Açu. Ninguém, como Rita, para fazer uma rosca polvilhada de canela. Ás vezes, por ser eu ainda quase um adolescente, segundo a minha amiga e anfitriã inesquecíveis, ela sugeria-me que comesse ovos à la coque com pão francês barrado de geléia, que ela fizera para mim, na limpa e ampla cozinha contígua à sala de jantar… Eu me servia, colocando-os em porta-ovos de prata, com uma pitada de sal e bastante manteiga Turvo ou Aviação, comprada em latas de um quilo…

Frequentemente eu continuava, ainda por uma hora, sozinho, sentado numa cadeira de balanço austríaca, lendo algum livro da sua esplendida biblioteca, ou me recolhia ao quarto de hóspede, onde me aguardava uma bela cama de casal lindamente trabalhada por hábeis artesãos, que pertencera, segundo Dona Gena gostava de lembrar, a João Café Filho, famoso sindicalista das Rocas que chegara ao Palácio do Catete, após o suicídio de Getúlio Vargas.

Ela a adquirira do ex-motorista do presidente — o único presidente brasileiro nascido no Rio Grande do Norte–, que a ganhara dele quando o mesmo se mudara para a antiga capital federal para nunca mais voltar à nossa terra, a não ser a passeio e por pouco tempo. Compunha o quarto, ainda, uma penteadeira que me servia de escrivaninha e que Dona Gena adquirira da poetisa Palmyra Wanderley, móvel de época, de uma delicadeza extraordinária, em cujo espelho eu costumava acompanhar com orgulho o crescimento de minha barba… E, no canto da parede, uma pequena estante de pau-rosa, envidraçada, ali colocada para o recreio do meu espírito, contendo os livros que eu leria… Ali, entre lençóis bem engomados e sutilmente perfumados de lavanda ou camomila, após a última leitura do dia, entregava-me, finalmente, aos prazeres do sono.

Bibliografia resumida de Maria Eugênia Maceira Montenegro

Saudade, teu nome é Menina

Lavras, Terra de Lembranças [memórias]

Alfar, a que Está Só [conto filosófico]

Azul Solitário [poesia]

Tradições e Costumes do Açu [ensaio etnográfico]

João Lins Caldas [ensaio]

Lourenço o sertanejo [romance de costumes]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em destaque, a fachada da casa colonial em que morou Maria Eugênia por mais de 70 anos; acima a escritora, nos anos de 1990, e seu discípulo, autor destas linhas.