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A casa de Walmir Ayala

Fundador de Navegos evoca os dois últimos apartamentos habitados pelo escritor e polígrafo gaúcho, de quem privou da amizade por quase 40 anos, até sua morte em 1991 Radicado no Rio em meados dos anos de 1950, o autor de Natureza Viva e À beira do corpo, pertenceu ao grupo literário liderado por Lúcio Cardoso, que constituía em sua época uma espécie de “Bloomsbury carioca” e tropical, frequentado por importantes escritores brasileiros como Maria Helena Cardoso, Clarice Lispector, Cecília Meireles e estrangeiros, como Rosa Chacel e seu marido, o diretor geral dos museus reais de Espanha, ambos perseguidos pelo ditador Franco; ela foi agraciada em seu centenário com o Prêmio Cervantes, considerado o Nobel espanhol.

*Franklin Jorge

Freqüentei seus dois últimos apartamentos. O primeiro em Ipanema, a algumas quadras da Praça Nossa Senhora da Paz, na Rua Barão da Torre, onde o conheci numa tarde de dezembro, alguns anos antes de sua mudança definitiva para o espaçoso endereço da avenida Praia do Flamengo, no mesmo edifício do PEN Club do Brasil, diante do belo parque projetado por Lotta de Macedo Soares, por muitos anos, amante de Elizabeth Bishop, cujos versos seriam traduzidos em primeira mão por Manuel Bandeira e minha amiga Juju Campbell Penna, num tempo em que a poetisa norte-americana ainda não se transformara numa espécie de ícone e padroeira das intelectuais lésbicas do Brasil.

Príncipe das letras, construiu Walmir Ayala no curso dos quarenta anos em que viveu no Rio de Janeiro, uma lenda que aureola sua vida e sua obra original e multifacetada, brilhante e profunda, distribuída em dezenas de títulos e gêneros literários que dominou com indiscutível tirocínio. Nascido em Porto Alegre, estreou em livro em 1955 aos 18 anos com um livro de poesia, “Face Dispersa”, seguido de “Este sorrir, a morte”, que lhe valeram uma rápida consagração nos círculos intelectuais mais exclusivos da antiga capital do país. Ali chegando, mal saído da adolescência, surpreendeu a todos com a novidade do seu talento a serviço da criação literária e dramática. Pior fim se tornou o critico de artes plásticas de maior prestigio de sua época. Uma conceituada referência inclusive no exterior.

Conheci-o ainda vivendo em Ipanema, antes da mudança definitiva para o Flamengo, onde tive a honra de ser seu hóspede, a última vez um pouco antes de minha mudança para o Norte, quando recebi dele algumas cartas extraordinárias nas quais destilava sua decepção com a situação política do Brasil, dominada pela mediocridade e avidez de uma quadrilha de colarinho branco equivocadamente eleita pelo voto popular. Lembro-me que ali estive, pela primeira vez, uma tarde, após o almoço.

Walmir recebeu-me sentado, tendo aos pés uma jovem negra que lhe massageava os pés enquanto Gustavo, então com dois ou três anos, sentado sobre os seus joelhos, puxava-lhe os fios da barba negra e espessa como a de um guerreiro assírio. Ao fundo, ocupando quase toda a parede meio envolta em sombras, o magnífico retrato pintado em 1969 por Vicente do Rego Monteiro iluminado por um refletor. Retrato meu já conhecido, pois fora reproduzido na volumosa edição de sua “Poesia Reunida” pelo Instituto Nacional do Livro em coedição com a Livraria José Olympio Editora.

Esse quadro do qual Walmir jamais se separou enquanto viveu, acompanhou-o sempre. O artista pernambucano, por mais de trinta anos residiu em Paris, voltou para morrer em sua Recife natal, em um lastimável estado de pobreza, embora cercado da glória de ter criado uma linguagem estética que o coloca ao lado dos grandes mestres da pintura moderna. Vicente o pintou, de corpo inteiro e quase em tamanho natural, na postura de lótus e cercado de gatos, encarnando a figura de um escriba egípcio, Kai. Usou uma gama de amarelos para construir essa figura que impressiona e cativa o olhar, como um dos grandes momentos da arte do retrato em todos os tempos. A sala, presidida por essa obra, parecia nua, talvez intencionalmente, para que o retrato se destacasse e nos transmitisse a idéia de uma oferenda votiva. Quase nenhum móvel, apenas, além de cadeiras e sofás, um longo console em madeira polida com alguns objetos e um ou outro livro como que deixado ali por acaso.

Bibliografia resumida de Walmir Ayala

 Face Dispersa

Este Sorrir, a Morte

Natureza Viva

A Pedra Iluminada

As Vestes e o Reino

Águas como Espadas

Estado de Choque

Poesia Reunida [poesia]

Sarça Ardente

Quatro Peças em um Ato

Teatro Infantil

Nosso Filho vai ser Mãe

Chico Rei

A Salamanca do Jarau [teatro]

À beira do Corpo

Um Animal de Deus

A Nova Terra [romances]

Diários Íntimos [em três volumes]

A Criação Plástica em Questão

Vicente, Inventor [ensaios]

 

Casa de Cultura Walkmr Ayala (1933-1991), em Saquarema, no litoral fluminense, instalada no prédio colonial da antiga Prefeitura Municipal. Acima, Walmir Ayala em foto de 1970. Acervo do Instituto Franklin Jorge (em organização).