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A casa de Zamma

Fundador de Navegos, em texto extraído de um de seus diários escritos no Rio de Janeiro, evoca artista com quem privou de sua amizade.  

*Franklin Jorge

Mulher alta, branquíssima e elegante, de grande beleza adornada por uns olhos que me pareciam esmeraldas líquidas e luminosas, Zamma fazia parte do mesmo círculo íntimo de Ruth Palatnik Aklander, nascida em Natal. Seu marido muito simpático e já aposentado, discreto e afável, fora quando mais jovem armador e construíra navios. Parecia apreciar a vida boêmia dos artistas. Tinham uma única filha que me foi apresentada e com quem estive apenas uma vez.

Artista plástica, seu pai, funcionário da Alfândega, era paciente e amigo do poeta Jorge de Lima [1893-1953], médico que não visitava senão seus pacientes e atendia em seu consultório à Rua do Passeio, na Cinelândia. Frequentava-o menos para tratar de sua saúde do que para conversar e apreciar as produções de grande criador literário e “pintor de domingo”, como ainda se diz de quem não se dedica inteiramente à arte da pintura. Dissera-lhe o autor de Invenção de Orfeu, ou seu pai lera em algum lugar, que o Brasil era um país semicolonial fadado a ser, entanto, uma grande democracia e o maior país do futuro, expressão que teria inspirado a Stefan Zweig, escritor alemão expatriado pelo terror nazista.

Seu apartamento, na Praça Nossa Senhora da Paz, quase despido de móveis, causou-me uma espécie de estranhamento ao visitá-la pela primeira vez e me deparei com um grande espaço pintado de branco. Assoalho, paredes, tetos, móveis, exceção de um tablado de madeira forrado de veludo verde e folhas secas, sobre o qual erguia-se um brilhante piano de cauda negro, imerso em uma penumbra esverdeada, resultava numa ambiência fantasmagórica, como a caverna de Platão, que mal deixava-nos entrever o quadro solitário sobre uma parede, como o tablado, coberta de veludo verde.

Em toda aquela vastidão havia somente um único quadro em tons de verde pintado por Jorge de Lima, escritor e político sergipano, ex-deputado por seu estado e vereador no Rio de Janeiro, e os sofás brancos, vários deles, com almofadas brancas, distribuídos ao longo das paredes. Do teto pendiam em cascatas deslumbrantes lustres de cristal da Boêmia, talhados a mão em facetas, como num feérico teatro.

Nessa sala conversávamos e algumas vezes, a seu pedido, lia poemas de Jorge de Lima, que em certa época fizera curiosas confidências a seu pai, que tinha como o seu poeta de estimação e dele recebera, como presente, alguns manuscritos de seu célebre poema que pude estudar a partir de sua misteriosa caligrafia que lembrava a do poeta João Lins Caldas, embora legível.

Em destaque., detalhe de pintura de Jorge de Lima, escritor e político sergipano, expoente do Modernismo Brasileiro; acima, manuscrito do autor de Invenção de Orfeu.