*Franklin Jorge
Parafraseando Shakespeare, dizia-me minha avó que não basta ao escritor escrever, mas saber escrever. Percebia, ao ouvi-la, que a chave de tudo estaria em saber fazer da melhor forma possível, embora não fosse capaz de traduzir isto claramente em palavras em um sentido preciso e inteligível e capaz de conter a experiência que faltava então ao menino que se encantava com aquela querida voz de contralto, clara, firme, eivada de luz.
Era o nome de Shakespeare uma espécie de talismã. Admirava-me que o seu nome podia ser grafado de diferentes formas, como um indicativo de sua grandeza. Minha avó o lera em sua adolescência no Ceará-Mirim, nas aulas de inglês que tivera com o poeta Abner de Brito, que ali se refugiara para opor uma barreira ao seu infortúnio. Homem culto e inteligente, admirado por seus pares, deixara-se degradar pelo álcool e pela maledicência suscitada pela popularidade de um soneto no qual celebrara o pecado. Dava aulas a domicilio, usando um velho exemplar de O mercador de Veneza, em inglês, que encomendara em correspondência endereçada a um famoso livreiro do Recife.
Esse fólio era O mercador de Veneza, que se publica quase sempre na companhia de uma outra peça do Bardo inglês, Sonho de uma noite de verão, ambas singulares e distintas das outras peças que eu leria alguns anos depois, por seus sortilégios e prodigiosa magia verbal. Pórcia seria a sua heroína predileta, uma das mais elaboradas e fascinantes personagens criadas pelo estro de Shakespeare, um poeta que falara e continuaria falando pelos séculos por miríades de vozes.
Sabia toda peça na ponta da língua. Assim pude ouvi-la antes de lê-la, o que faria depois vezes sem conta, como agora, e em todas as estações da existência. Quantas vezes, ao voltarmos para casa, não evocava a minha avó as palavras de Pórcia sobre a alegria e o conforto de vislumbrar ao longe, da sua casa cheia de vida, a luz bruxuleante da candeia, a mesma luz que às vezes, ao regressarmos de passeios à sua terra de origem, divisávamos após deixarmos para trás o Martins e, logo depois da velha e sombria casa de João Cazuzô, avistávamos, à uma distância no entanto tão próxima a luz dos candeeiros que iluminavam a cozinha onde o nosso jantar era preparado por Kamundá, uma negra de má índole associada a um crime de morte, de ostensivos e fartos cabelos de fogo, que cozinhava como ninguém mais em todas aquelas cercanias’.
Estamos chegando, dizia a minha avó de volta ao Estêvão, uma terra que se tornara sua pelo casamento, onde plantara um pomar, uma horta e um pequeno e exuberante jardim com grandes lençóis de Bramante toda vez que se anunciava a visita de uma sua comadre que tinha a má fama de botar quebranto em tudo o que era belo e viçoso. Bastava ela gabar a beleza e a graça de uma criança para a mesma, incontinenti, descangotasse e perdesse o viço, esvaindo-se em vômitos e desinteria; as plantas murchavam e os frutos, dias depois, infalivelmente, ressequiam e despencavam dos galhos.
Estamos chegando. Estamos chegando de volta â nossa casinha, como Pórcia voltava na companhia de Nerissa, sua fiel e querida dama de companhia, de Veneza para o Continente, onde a esperava em Belmonte, onde a luz da candeia brilhava na crista do morro, dando-lhes as boas- vindas. E, comovida pelas lembranças e a satisfação de ter um lar e uma vida modesta e intensa entre os seus queridos, repetia com o mesmo calor humano as palavras que Shakespeare botara na boca da mais encantadora heroína plasmada por seu engenho poético:
[Belmonte. Uma avenida que vai dar à casa de Pórcia. Entram Pórcia e Nerissa e se conservam a distância]
PÓRCIA: – É em casa aquela luz! Como a pequena candeia chega longe com seus raios! Desse modo, no mundo corrompido brilha uma boa ação…
Ao que eu, menino atilado e de boa memória, acrescentava fazendo as vezes de Nerissa, sua amiga e dama de companhia:
– Se a lua brilha, não vemos a candeia…
E minha avó, interpretando Pórcia:
– A maior glória obscurece a menor; um substituto brilha tal como o rei, enquanto perto não vem o rei ficar: então se escoa todo o seu brilho, como o regatinho na imensidão da água. Escuta! Música!
NERISSA: – Senhora, é vossa a música, da casa.
PÓRCIA: – A bondade das coisas, vejo-o agora, depende do momento. Estes acordes soam melhor de noite que de dia…
O mercador de Veneza, de William Shakespeare, 1564-1616.
Ato V – Cena l