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A casa dentro do sonho

Fundador de Navegos compartilha com seus leitores fragmento de Everness, livro inédito que reúne as lembranças de sua infância, no Estevão, na companhia de sua avó materna, até os 14 anos.

*Franklin Jorge

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Parafraseando Shakespeare, dizia-me minha avó que não basta ao escritor escrever, mas saber escrever. Percebia, ao ouvi-la, que a chave de tudo estaria em saber fazer da melhor forma possível, embora não fosse capaz de traduzir isto claramente em palavras em um sentido preciso e inteligível e capaz de conter a experiência que faltava então ao menino que se encantava com aquela querida voz de contralto, clara, firme, eivada de luz.

Era o nome de Shakespeare uma espécie de talismã. Admirava-me que o seu nome podia ser grafado de diferentes formas, como um indicativo de sua grandeza. Minha avó o lera em sua adolescência no Ceará-Mirim, nas aulas de inglês que tivera com o poeta Abner de Brito, que ali se refugiara para opor uma barreira ao seu infortúnio. Homem culto e inteligente, admirado por seus pares, deixara-se degradar pelo álcool e pela maledicência suscitada pela popularidade de um soneto no qual celebrara o pecado. Dava aulas a domicilio, usando um velho exemplar de O mercador de Veneza, em inglês, que encomendara em correspondência endereçada a um famoso livreiro do Recife.

Esse fólio era O mercador de Veneza, que se publica quase sempre na companhia de uma outra peça do Bardo inglês, Sonho de uma noite de verão, ambas singulares e distintas das outras peças que eu leria alguns anos depois, por seus sortilégios e prodigiosa magia verbal. Pórcia seria a sua heroína predileta, uma das mais elaboradas e fascinantes personagens criadas pelo estro de Shakespeare, um poeta que falara e continuaria falando pelos séculos por miríades de vozes.

Sabia toda peça na ponta da língua. Assim pude ouvi-la antes de lê-la, o que faria depois vezes sem conta, como agora, e em todas as estações da existência. Quantas vezes, ao voltarmos para casa, não evocava a minha avó as palavras de Pórcia sobre a alegria e o conforto de vislumbrar ao longe, da sua casa cheia de vida, a luz bruxuleante da candeia, a mesma luz que às vezes, ao regressarmos de passeios à sua terra de origem, divisávamos após deixarmos para trás o Martins e, logo depois da velha e sombria casa de João Cazuzô, avistávamos, à uma distância no entanto tão próxima a luz dos candeeiros que iluminavam a cozinha onde o nosso jantar era preparado por Kamundá, uma negra de má índole associada a um crime de morte, de ostensivos e fartos cabelos de fogo, que cozinhava como ninguém mais em todas aquelas cercanias’.

Estamos chegando, dizia a minha avó de volta ao Estêvão, uma terra que se tornara sua pelo casamento, onde plantara um pomar, uma horta e um pequeno e exuberante jardim com grandes lençóis de Bramante toda vez que se anunciava a visita de uma sua comadre que tinha a má fama de botar quebranto em tudo o que era belo e viçoso. Bastava ela gabar a beleza e a graça de uma criança para a mesma, incontinenti, descangotasse e perdesse o viço, esvaindo-se em vômitos e desinteria; as plantas murchavam e os frutos, dias depois, infalivelmente, ressequiam e despencavam dos galhos.

Estamos chegando. Estamos chegando de volta â nossa casinha, como Pórcia voltava na companhia de Nerissa, sua fiel e querida dama de companhia, de Veneza para o Continente, onde a esperava em Belmonte, onde a luz da candeia brilhava na crista do morro, dando-lhes as boas- vindas. E, comovida pelas lembranças e a satisfação de ter um lar e uma vida modesta e intensa entre os seus queridos, repetia com o mesmo calor humano as palavras que Shakespeare botara na boca da mais encantadora heroína plasmada por seu engenho poético:

[Belmonte. Uma avenida que vai dar à casa de Pórcia. Entram Pórcia e Nerissa e se conservam a distância]

PÓRCIA: – É em casa aquela luz! Como a pequena candeia chega longe com seus raios! Desse modo, no mundo corrompido brilha uma boa ação…

Ao que eu, menino atilado e de boa memória, acrescentava fazendo as vezes de Nerissa, sua amiga e dama de companhia:

– Se a lua brilha, não vemos a candeia…

E minha avó, interpretando Pórcia:

– A maior glória obscurece a menor; um substituto brilha tal como o rei, enquanto perto não vem o rei ficar: então se escoa todo o seu brilho, como o regatinho na imensidão da água. Escuta! Música!

NERISSA: – Senhora, é vossa a música, da casa.

PÓRCIA: – A bondade das coisas, vejo-o agora, depende do momento. Estes acordes soam melhor de noite que de dia…

O mercador de Veneza, de William Shakespeare, 1564-1616.

Ato V – Cena l