*Alexsandro Alves
I.
A descrição contida no cabeçalho é quase uma traição. Porque ao lê-la, dá até a impressão de que é sobre uma obra, digamos, comum.
Mas é Mahler. E toda a neurose desse artista, assim como em outras obras, também está contida nessa. Mas essa obra é peculiar por vários motivos.
Desde Beethoven, uma lei interior na alma dos compositores ditava que cada sinfonia deveria ser um mundo à parte, ter sua própria personalidade.
A busca pela originalidade, esse ideal oitocentista por excelência, se infiltrou no fazer artístico romântico como um desejo fáustico que encerrava a crença da imortalidade através da obra de arte.
No classicismo e em épocas anteriores, esse desejo por originalidade inexiste. As sinfonias de Mozart e Haydn, soam de forma semelhantes, há um estado de ser clássico que impregna todas as composições do período. A sonoridade das famílias da alta nobreza, das cortes, não demandava que os compositores procurassem por originalidade, eles deveriam, sim, alcançar aquela sonoridade específica.
Um dos problemas em torno de Mozart foi exatamente esse: ele já ensaia uma liberdade da corte, sem sucesso; Beethoven, sim, conseguiria essa liberdade, mas não sem pagar muito caro – morreu pobre, doente e isolado.
Com a emancipação política dos Estados europeus das cortes a partir da Revolução Francesa, a situação dos artistas melhora de um lado, mas piora por outro. O conforto que desfrutavam, caso fossem servos de uma corte, desapareceu completamente.
Agora, o artista é um trabalhador como outro qualquer; capaz de mendigar e de passar fome; é, na visão baudelairiana, um maldito:
Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta se apresenta à plateia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:
– “Ah! tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!
(As flores do mal, tradução de Ivan Junqueira)
Ninguém, no século XX, é herdeiro de tamanha desgraça, senão Mahler! Sua voz é a do artista desprezado, sem pátria e doente.
Mas consegue ser feliz…
II.
Uma felicidade por vezes mórbida.
A Terceira sinfonia contém todos aqueles cacoetes mahlerianos: uma música que alterna o sublime com trechos vulgares; canções populares em meio às mais extravagantes harmonias; e, sobretudo, muita colagem.
Ela é em Ré menor e é a obra mais longa de Mahler, 100 minutos, um tempo descomunal para uma sinfonia. O primeiro movimento, Kräftig. Entschieden (forte e decisivo), contém o título: Pã desperta, o verão marcha. Esse movimento dura 30 minutos e é, como demonstra o título, uma saudação às festividades comandadas por Pã com a chegada do verão.
Claro que sentimos esse calor de veraneio nas cordas, nos tremolos das cordas. No início sentimos essa presença acalorada, sobretudo quando, acompanhando esses tremolos, as madeiras surgem brilhantes, como raios de Sol; porém a insistência dos metais e as batidas dos tímpanos direcionam nossa visão para outras imagens. O tema inicial, nas trompas, acompanhadas pela percussão, é festivo e há, em seu desenvolvimento, uma certa tranquilidade de um lado e por outro muita vivacidade; a marcha que também compõe esse movimento nos dá a ideia de uma certa graciosidade, em muitos momentos, infantil.
Porém, eu não sinto que Pã de fato chegou. Só se for para a sensibilidade alemã. E pode ser isso mesmo. Eles têm um verão diferente do nosso. O uso extensivo de materiais entregues à percussão confere à obra uma particularidade rítmica nova e mais vivaz do que geralmente ocorre em obras germânicas. Todavia, a urgência em uma grandiosidade em várias passagens retira a leveza e a graciosidade, inclusive sensual, que este personagem sugere. É como se saudassem mais um rei com muita pompa do que o jovial deus Pã.
É um movimento maciço e poderoso e vale em si mesmo a sinfonia inteira. Com o passar do tempo, a música conflui para um gigantesco baile ao ar livre.
No filme de 1974, Mahler, uma paixão violenta, de Ken Russell, o diretor tenta uma explicação para esse movimento.
Mahler está tendo pesadelos. Uma estranha criatura emerge de um ovo gigante ao som desse primeiro movimento. Ela se arrasta devagar e lânguida, enquanto líquidos pegajosos a grudam na casca do ovo. Em um trem, Mahler afirma para sua esposa, Alma, que aquela criatura do ovo é ela desejando se libertar dele. Uma interpretação assim só faz sentido nas partes mais sombrais da música. Os momentos mais festivos não comportam essa descrição.