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A confissão de um existencialista camusiano

A queda inspira confissão camusiana ao Fundador do Espaço Cultural Marcel Proust, Carlos Russo Jr, Colaborador da revista Navegos, que vem se tornando uma referencia entre os leitores de bons textos que fogem ao lugar-comum.

*Carlos Russo Jr.

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Desculpe-me o mau jeito. Sei que o espaço da cela é pequeno, que nos conhecemos somente de passagem, mas o que fazer, não é mesmo? Melhor seria se já fossemos conhecidos, tivéssemos bebido juntos nos bons bares da Vila. Gosta de lá? Como nenhum de nós escolheu isso aqui e se eles resolveram nos meter juntos, o que podemos fazer? No meu caso, dizem que não será por um curto período, não. É provável que você saia antes, bem antes de mim, mas nos dias de hoje quem pode saber?

Você já dorme na cama de baixo? Pena, vou ter que me esforçar sempre para subir, minhas articulações, com a idade, já não são o que eram antes, o que se pode fazer? Tentarei me adaptar para estar sempre um metro e meio acima de você. Desculpe-me, mas são coisas do destino.

Preciso me acostumar a viver no desconforto. Embora isto seja relativo. Nas celas do desconforto dos Czares eram colocadas tanto as pessoas com passagem sem volta para a execução, quanto aquelas a serem esquecidas para o resto da vida. As celas não tinham altura para se estar em pé, nem largura para se deitar. Com a tortura esperava-se que o encarcerado reconhecesse sua culpa, delatasse. Nossos carcereiros nunca nos esquecem, já nascem com o aprendizado incrustrado na pele.

Ah, agora noto que você sente frio, o corpo todo coberto, só a cabeça para fora da manta e segue sentindo frio. Tente parar de bater os maxilares, pode estourar seus dentes. Bom, quando quiser ou puder falar é só pedir. Dizem que meu ego é enorme, que chego a ser um poço de vaidade, mesmo assim garanto que além de falar vou também ouvir. Logo, esteja à vontade.

Bem, minha dita vaidade… Certo, sei que sou vaidoso, também pudera, minha vida tem sido sempre muito valiosa. Agora tropecei, mas ouça-me, ainda voltarei a ser um dos grandes. E é por ter a justa consciência de mim mesmo que sempre me considerei livre para fazer o que quisesse, sou esperto, mais ativo, mais inteligente, o melhor e mais hábil articulador que praticamente todo o mundo da política. E no reconhecimento em mim mesmo de tantas virtudes torno-me superior, e então sei ser benevolente, tranquilo, estável e confiável.

Enquanto me traziam para cá me disseram que encontraria um delator aqui. Só pode ser você, pois não vejo ninguém mais. É a casa caiu. Foram aqueles como você que armaram, ofereceram e, depois, fizeram tudo despencar e agora fica aí, enregelado de frio, enrolado na manta e sem poder nem mesmo falar.

Vejo que não se anima muito, mas quem sabe o sol lhe daria um pouco de calor. Não? Também por que me importaria? Acabo de ser metido nessa jaula por um policial brutamonte, deve ser o mesmo que passa o ferrolho na porta depois da hora do sol. Cá entre nós, somos, cada um na sua, pessoas normais e que em outra situação poderíamos até mesmo sermos amigos. Um pouco de barriga aqui, uma corcundinha saliente ali, mas eu me pergunto, por acaso temos outras semelhanças com o brutamonte que mal sabe resmungar, receber e dar ordens curtas, sem contestação? “Prisioneiro entra”, “sai”, “hora do sol”, “advogado”. Podemos, cá entre nós, sermos submetidos a um energúmeno, que das funções humanas só sabe viver em patuleias, sem demérito para os gorilas e para as formigas que também vivem em bandos? Aliás, se existe um demérito, ele é nosso.

Este carcereiro, a quem chamam Marechal, é perfeitamente senhor de seu estado de alma, um privilégio quando a única intenção que se tem na vida é comer, trepar, dormir e beber, preservando-se para, nos intervalos, tratar das atividades sanitárias. O brutamonte abre e fecha portas, conta o número de presos e encerra o serviço. Possui a graça de ter o raciocínio curto, estreito, o que o protege e o controla. Tudo se resume a isso ou quase tudo.

Aposto que num ponto ele se nos assemelha. Se necessitarmos um favorzinho especial, como uma refeição que nossas mulheres encomendem a um chefe, ou uma escapadela com uma delas para uma dessas celas vazias, ele nos fará, mediante propina. Vejo que você sorri, consegue afinal mover o maxilar, afinal temos mais sintonia com o brutamonte do que imaginávamos!

Aliás, no oferecimento de propinas você é um campeão! Vou por aí aprendendo, minha experiência é mais voltada para receber que dar.

Seguramente já me conhece de fama, vejo que acede com a cabeça. O frio diminuiu? Que bom. Tinha que ser assim. Afinal, sou uma personalidade! Viver no alto é a único modo de ser visto e saudado com reverência pela maioria das pessoas. Até os assassinos quando matam obedecem a esse mesmo sentimento. Mas você não o é, jamais foi ou será, e desde que decidiu cooperar com o que chamam “lei”, optou por anular-se, nada mais, nada menos. Costuma-se pagar caro por certos triunfos.

Como capitalista você sempre foi um criminoso, mas nem isso importa muito agora. Tantos trilharam seu caminho e tantos ainda o trilharão… E daqui sairão com uma tornozeleira eletrônica, se tanto, e irão desfrutar a grana escondida que ninguém teve o trabalho de tentar descobrir, tão pouco interessava, ou se o descobriram o soltarão para reparti-la depois. Soube que os quadrilheiros que nos julgam estavam articulando uma fundação? É, a tentação da grana é universal, não concorda?

Uma fundação de desvios de fundos públicos para eleger novos corruptos! Sinal dos tempos.

Muitos falam mal de mim, é verdade. Sei que não sou santo, mas olhe lá. O que dizem meus detratores é sempre exagerado. Tenho lá meu caráter, meus valores e, principalmente, meu método. E posso com certeza assegurar que o que faltou para vocês e os seus colegas foi um método! Deixaram-se enrolar e nos enrolaram todos. E ter um método, persegui-lo, pode nos permitir milagres em momentos de angústia, pressão, isolamento. Mas onde ter um método torna-se essencial mesmo, é nos instantes de decisões. Posso lhe assegurar que um método nos ajuda até mesmo prescindir do caráter, o qual para você nada quer dizer, não é mesmo?

Não me considero culpado por nada, do que me acusam, quero que o saiba. E recorrerei de toda e qualquer acusação. Sou e serei inocente, nem que tenha de acusar os deuses e toda uma geração. Meus erros, eu os tive em abundância, não decorreram de minha natureza, nem de meu caráter, antes de uma falha no método e das circunstâncias. Me permiti ser absorvido por vocês. Logo, não admitirei, sob nenhuma hipótese, a velha lengalenga que diz que a história me absolverá.

Agora veja bem, com que interesses fizeram com que esse nosso pequeno cubículo ocupasse um espaço imenso em nosso país? Visto de fora, ninguém poderia acreditar. Páginas e mais páginas de jornal e revistas, horas e horas de televisão, bilhões de bites nas redes, aliás, podemos chamar isto de um país? Querem que pareçamos um pandemônio de ladrões. Sabe por quê?

Para vender as empresas estatais em que vocês trabalharam na bacia das almas. Doá-las, às custas de boas comissões.

E nós dois, em que diferimos dos que estão soltos, dos policiais e juízes que nos mandaram encarcerar? Dos que hoje comandam a política e a economia? Eles tentam resguardar seus próprios crimes, roubos, escorches, sonegações e saques, e por isso acomodam-se uns aos outros. Usam nossa cela como um anteparo.

E de que me acusam os inquisidores? Corrupção? Ora, a corrupção nasceu com o homem. Eu cumpri um papel histórico. Quiseram me acertar foi exatamente por isso! Somente isso! Ora, se nesse processo todo, eu tive segundas intenções, que me apresentem um só homem que não as tenha tido. Mas eles me prenderam, me julgarão, eu sei que me sentenciarão e me castigarão como uma forma de se defenderem, de entregarem ao povaréu uma cabeça num prato plástico pronto para a execração pública.

Diga-me, por favor, estou errado?

Vivemos em um lugar em que a história é elástica, depende de que lado se queira interpretá-la. Ela admite, ou melhor, sempre exigiu o crime, a corrupção, a barbárie.

Quem pode é criminoso, corrompe-se ou é corrompido, e quem não pode, meu amigo, não devo, mas por força de hábito vou chamá-lo assim, vive pelas favelas, pelas ruas, lixões, rasteja e procura cometer algum pequeno crime, o suficiente para sobreviver um dia a mais, deixar para amanha o morrer de fome, de febre ou de bala. São os pedintes, os mendigos, os sem teto, os sem nada e quando um deles se aproxima de pessoas como nós, ele nos causa nojo, desagrado, desconforto. Eu mesmo que já passei por fases duras na vida morro de medo dos contágios. E pode-se chamar esse receio, essa autopreservação de maldade? Não, creio que tão somente uma medida de prevenção sanitária. E se o for, qual é a novidade nisso tudo? A maldade é e sempre foi, desde o sempre, uma instituição nacional. O caso é sempre o de saber quem irá arruinar o próximo.

Vivemos num lugar onde os crimes e seus filhotes, as sacanagens se reproduzem todos os dias, todas as horas, a cada instante. Ocorrem assim porque sempre ocorreram, desde a colônia e seus os escravos, índios e negros. E do que me acusam meus inquiridores? Corrupção? Formação de quadrilha? E quem são eles? Quiseram-me acertar, somente isso! Mas sou senhor de meu estado de espírito. Sempre tive segundas intenções, mas descreva-me apenas um ser humano que não as tenha tido.

No antigamente, o escravagismo era másculo em relação ao capitalismo liberal, o sinhô não escondia o jogo. Tinha-se mais coragem! O português se estabelecia no Valongo e colocava uma placa: vendo carne negra! Ela era mal tratada pelo amo, mas tinha lá seu preço. Hoje se amacia a pauladas e se elimina a bala tanto a carne negra, quanto a mestiça, até mesmo, como exceção, a branca! Desperdício, sinal dos tempos, no qual o homem ainda quer ser servido, logo tem necessidade de escravos assalariados ou desempregados autônomos e de tranquilidade.

De todo modo a coisa se espalha. Para o mais ínfimo e desgarrado, o pobre, sobra a própria a mulher, os filhos, a família. Ele os explora e os espanca, se necessário. A pedra de toque é a pessoa poder urrar até patear se não for servida. E, quando necessário, dar algumas pancadas, até ouvir um ‘sim senhor’!

E essa segue sendo a história e, se gritos e pauladas não bastarem, resta sempre a polícia e, depois, um juiz, como esse marreco de Pato Branco, que virou ministro de um farsante e ainda que sonha ser o primeiro da nação.

E já que não cai bem chamar os serviçais de escravos, melhor denomina-los de funcionários, mesmo que terceirizados. São livres, sorriem e nós nos firmamos numa consciência tranquila, politicamente correta.

Eu mesmo sempre vivi cercado por esses seres privados de vida independente, atentos a um chamado meu. E, confesso que raramente me negava a iluminá-los com minha luz, minha aura de competência e originalidade.

Agora, aqui estamos nós dois. Sabe, no fundo, o que nos trouxe até aqui foi o apetite insaciável, não é mesmo? Foi um acaso que nos obrigou a convivermos por certo tempo atrás de grades.

Vou lhe confessar uma coisa. Quando em liberdade, eu sempre fui um insatisfeito. Quis sempre mais, mais eficácia, mais eficiência, o poder, o maior poder, mandar sempre, ser temido, badalado, mitificado, sei lá. E olhe que já fui libertário, arrisquei o pescoço por causas nobres, corri muitos riscos, mas ainda é cedo para falarmos sobre isso. Nessa época eu vivia entre os homens sem partilhar seus interesses materiais e por isso acreditava nos compromissos que assumia.

Durante muito tempo minha vida seguiu como se nada tivesse mudado. Conseguiria realizar minha tarefa? Que tarefa? Valia a pena continuar a fazer o que eu fazia? Eu nem sabia mais.

Você sorriu, conhece minha fama, um fragmento de meu passado. Mas o que você sabe é o que a mídia circula, o que a ela interessa circular. E ela só circula o que lhe interessa da realidade.

No passado eu chegava a ter vergonha de possuir coisas que aos outros faltavam. A propriedade para mim era um assassinato social. Hoje, que nada mais tenho, é como um retorno ao ponto de partida, embora ter tido só faça aumentar a minha insatisfação. Faz parte de minha natureza ser o que sou, insatisfeito e profundamente egocêntrico, embora, por profissão seja um servidor de meu próximo.

Você já leu Dante? Não, claro que não. Os grandes burgueses de hoje em dia nem se dão ao luxo de manterem as aparências. São incultos, boçais, básicos. Que pena, eu de meu lado sempre leio, principalmente o teu capítulo, o dos traidores, delatores, daqueles que são encerrados no nono círculo do inferno. Quando uma pessoa nele entra, fica fixada para sempre, enregelando, aliás, você continua a tremer de frio.

Não pense que também não me enxergue na comédia, que de divina nada tem. Estou no limbo, nem no céu, nem no inferno. Sou uma espécie de anjo neutro. E advinha por quê? Porque eu nunca acreditei na vida que os assuntos humanos fossem mesmo muito sérios. Eu só desempenhei, a cada momento, o meu papel e da melhor forma que poderia. Quando da ditadura, resisti. Na democracia, militei, sempre eficientemente, com inteligência e dedicação, com intransigência e virtuosismo.

E surgem, de repente, em nossas vidas esses que se aventuram a falar no direito, nas leis, ora, nós sabemos como as leis são feitas, sempre pelos piores malfeitores. De que é composto nosso Congresso, nossas Câmaras, senão de malandros, mentirosos, até mesmo criminosos? Não sorria, esse sorriso parvo de quem se esforça para não bater os dentes. É claro que eu me incluo entre os fazem e os que cumprem as leis. Afinal já fui deles companheiro, sei o que cada votinho custa, milhares, milhões. Já gozei da mesma natureza.

E aqueles que julgam? Eles o fazem com medo de serem um dia julgados, e enquanto isso se locupletam com o dinheiro público, ou não tão público para julgarem! Mas o que me pode por nervoso é esse teu olhar parvo.

Aprendi uma coisa na vida. Não seja sincero nem com você mesmo, afinal existe sempre o risco de sê-lo com os outros, mesmo que seja por um descuido. E tão pouco creia quando seus amigos pedirem que seja sincero com eles. Afinal, como a sinceridade poderia ser a base da amizade entre cliente e fornecedor? Tal qual nos sites de relacionamento e na mídia social, prometa ser verdadeiro e minta, minta sempre o melhor e o mais que puder.

De minha parte, sempre vivi rodeado de parceiros de trabalho. Amigos mesmo acho, nunca os tive. É que a amizade é de aquisição longa, difícil, depende de favores prestados e recebidos. O que tenho, isso sim, são muitas parcerias, ou melhor, tinha-as todas, até aquelas que hoje tentam se livrar de mim. Estavam sempre aos meus pés enquanto minha companhia os provia, um simples telefonema meu abria-lhes toda uma alameda de favores, mimos. Eu inspirava poder, comando, segurança. À medida que o círculo do qual eu era o centro se esgarçava até romper-se principiaram, veja só, a me julgarem, tive até mesmo a impressão de que tentavam me aplicar rasteiras para se livrarem. Agora, na prisão, não acredito que me visitarão ou me escreverão. Compromete…

Saiba, entretanto, que eu não os condeno, pois eu faria o mesmo. É o efeito do tombo que levei. E quem despenca pode levar outros consigo, logo, distância dos que caem.

Assim é a queda!

Muitos devem rezar para que eu enfarte ou me enforque. É que só a morte é segura, liberta todos os vínculos, faz esquecer. Você já pensou quanta gente aliviada se sentiria se amanhã, o brutamonte, que nos guarda, nos encontrasse pendurados pelo pescoço lá no alto da grade?

Aprendi que somente queremos verdadeiramente nossas amizades e parceiros quando eles morrem. Muito mais e melhor se for a morte for heroica. Perdão, eu me esquecia de que o tempo dos heroísmos se acabou há muito tempo. Já se foi. Os mortos dos dias de hoje nada falam, cobram e nunca cobrarão. No tempo do passado, ainda permanecia a memória e amávamos no morto uma parcela de nós mesmos, pois um homem não suporta amar sem se amar. Nos dias de hoje, o coração é mais duro e a memória, muito curta.

A gente suporta muito, mas tudo? A alma é complicada, nunca se tem certeza de quando se sofre uma privação por muito tempo. O homem só se convence de nossa seriedade depois que já morremos, enquanto vivos, o caso é sempre duvidoso. Eles poderiam, então, num belo dia, preparar um lamento cívico pela minha morte, darem meu nome a uma fundação, na pior das hipóteses, nome de rua.

Mas não penso em assistir à minha própria execução e ao funeral. Ademais amo a vida, não sinto náuseas de mim mesmo, tão somente dos outros. Sendo assim, quanto lhes pedirei para não me enregelar como você? Cada sacrifício tem seu preço, eles o sabem perfeitamente. Cobrarei um dia ou outro, estarão dispostos a pagar?

Você tem religião? Eu sabia. Já pensou que não é necessário deus algum para castigar? Ora, não diga! No fundo nós dois somos ateus e hipócritas. Bastamos nós mesmos e o tal do juízo final ocorre todos os dias. E nós aqui estamos.

Balela, ninguém esquece ofensa recebida. Sua religião manda perdoar aos que o ofenderam, não é mesmo? Eu jamais esqueço e nunca perdoei a nenhuma delas. Aliás, ninguém perdoa ninguém, apenas se esquece do outro.

Quando encosto a cabeça para dormir eu sonho acordado. Eu que sonhava sempre em ser o primeiro em tudo, de repente me vejo preso, agredido e sem poder reagir. Acho que a impotência pode me destruir. Nada mais.

Sempre soube que tinha inimigos, primeiro uns poucos, depois quando subimos na vida, centenas. Na minha profissão é assim mesmo, adquirem-se inimigos até mesmo entre gente que não conhecemos. Para muitos prestei algum serviço, para outros, por orgulho, recusei-me. Errei, deveria ter prestado. Mas, o que fazer, eu me irritava. Quem chegou aonde eu cheguei não tem o tempo a seu dispor, os compromissos tornam-se tantos que a gente se esquece de aparar arestas, comprometer mais gente, buscar cúmplices em todas as ações. As pessoas só respeitam nossa felicidade e aceitam o nosso sucesso caso os repartamos. E quando se sentem preteridas, injustiçadas, só perdoam enquanto a vingança é impossível.

Acontece que sempre acreditei viver um papel, um papel excepcional. Aliás, cada um de nós se crê um caso excepcional. Fiz muitas coisas que o meu papel excepcional exigia.

Não, quero ser absolvido e que os bandidos, os verdadeiros bandidos, aqueles que me acusam esses sim, sejam responsabilizados. Para isso sempre necessitamos ter dinheiro longe do alcance de mãos cobiçosas, de investigadores e juízes cobiçosos. Somente tendo dinheiro e nos mantendo abastados, colocando cada centavo nas cabeças certas, nos livraremos do julgamento imediato e, depois, com o tempo, deixamos de ser alvos dessas multidões ávidas do sangue, que não é o delas próprio. Estaremos bem guardados em condomínios fechados, carros blindados. E se a riqueza não tiver o poder de nos absolver, que consiga ao menos a suspensão da pena e pena suspensa cheira a absolvição, não cheira? Está bem, eu não disse que fosse, apenas que cheirava.

Confesso que nos últimos tempos andei à deriva e isso depois de debater-me, de ter esgotado todos os meus ares de insolência. De certa forma decidi retirar-me do convívio com os homens, refugie-me junto às mulheres. Elas não nos condenam por nossas fraquezas, não! O que elas fazem é humilhar-nos se titubeamos, abatem nossas forças, nos esgotam. Já disse alguém que é por isso que uma bela mulher não é a recompensa do guerreiro, mas do criminoso. Ela como porto de chegada o abriga e aí ele é seu prisioneiro.

Sempre que me julguei apaixonado fiz papel de bobo. Promessas de amor o que são? Uma vez fui tomado por uma falsa paixão por uma encantadora e gostosa desmiolada. E ela falava amor tão fácil e de amor tão bem, com a mesma segurança e convicção de quando eu falava de uma sociedade sem classes. Convicção sedutora, mas depois de ter dormido com uma papagaia acordei com uma serpente. Foi quando eu cheguei à conclusão de que perdera ou jamais tivera a prática de encontrar ou reconhecer um amor. Eu que por quase cinquenta anos só fizera amar a mim mesmo, entrei nessa furada. Agora, deixei a cobra, acabou-se o jogo, não quero teatro. Ao tédio restava-me a libertinagem e, cá entre nós, ela preenche muito bem o vazio do amor.

Na libertinagem não existem obrigações, logo ela é libertadora. Nela cada um só se possui a si próprio, uma selva sem futuro e sem preocupar com ele. Também não tem nem passado, nem promessas, compromissos ou castigos imediatos. E, pelas dúvidas, de vez em quando, sirva-se de um preservativo. O libertino vive um sonho, um longo sonho. E sua prática ele a exerce em lugares exclusivos do mundo, onde se permite a entrada tanto da esperança quanto do medo, tanto da medida quanto da desmedida. Não exige troca de pensamentos e, por vezes, dispensa até mesmo o dinheiro.

Talvez por entender isto sempre tive êxito com muitas mulheres. Não me refiro ao fato de fazê-las ou não felizes. Nem sequer de sentir-me feliz ao lado delas. Sempre me ative a desfrutá-las, pura e simplesmente. Eu era bem sucedido, homem de tribunas e palanques, de assembleias e debates. Amei muitas. Amei? Acho que no fundo, sinceramente, jamais amei alguma. Se o amor ocorreu ele se esvaneceu na vaidade satisfeita e no tédio das relações. A sensualidade e o exibir imperaram na minha vida amorosa. As mulheres que mais me amaram foram simples objetos de prazer e conquista. As outras, minhas parceiras, companheiras de ação e de conversas, conforto e alguma ternura.

No fundo você me presta um favor delatando. É preciso estender a culpa e a condenação a todos sem exceção! Se todos se conspurcam, a quem punir? Nada de desculpas, para ninguém. Eis o meu princípio de partida. Nego desde já a boa intenção, o erro compreensível, o passo em falso, a circunstância atenuante. Quero desde já fazer a conta, simplesmente.

Você é um grande capitalista e da pior raça. Ladrão, corruptor por gerações e gerações, donos do poder de fato. Mamam no erário e distribuem percentagens para cá e para lá, desde que lhe facilitem o roubo. Para vocês, não existem alternativas. Ou o sujeito aceita ter as mãos molhadas ou lhe cortam a cabeça. Vá fazer política na lua. Não é mesmo?

O que vocês desejariam impor e talvez o consigam, é a servidão. A servidão é sempre coletiva. Todos de joelhos para servi-los, até o mais alto mandatário do país. É claro que se mantendo certo tipo ritos e circunstâncias, pois o populacho, apesar de improvável, poderá um dia levantar-se e colocamo-nos todos numa guilhotina.

Verdade que seus serviçais de primeiro nível vivem como reis. E eu vivi minha pequena realeza. E a mídia se encarrega de vestir o rebanho servil com o manto da liberdade. Antigamente eu só tinha essa palavra em minha boca: liberdade. Se não morri por ela, passei muitos riscos. Preciso me perdoar dessa imprudência, não sabia o que estava fazendo. Não sabia que a liberdade não é uma recompensa, nem condecoração que se saúda com caipirinha em meio aos mais prósperos.

No recolhimento compreendi que tinha medo da liberdade, que o essencial não é mais ser livre, mas obedecer a quem for mais malandro que nós. Entendi que comecei como libertário para eleger-me acima de todos. Mas veja que não me acuso grosseiramente. Não, busco traços comuns, experiências pelas quais passei, fraquezas que partilhei com meus parceiros, e procuro o bom tom de uma máscara. Isso mesmo, uma máscara! Será esse o retrato que apresentarei aos meus contemporâneos em espelho.

Eu que sou como todos, numa mesma lancha conduzida por um Caronte vagabundo.

Logo, não preciso de promotores, acusadores. Eles são ainda mais delinquentes.

O essencial é permitir-se tudo, proclamar a própria indignidade. Eu mesmo me acuso e quanto mais o faço, mais e mais adquiro o direito de julgar a todos, especialmente aos de sua laia. E assim o fazendo, poderei um dia recomeçar e gozar a natureza e o encanto do refazer, junto aos meus chegados.

Quando amamos nossa vida, quando sabemos que é preciso muda-la, não temos escolha, não é mesmo? O que fazer para ser outra pessoa? Impossível! Mesmo para um falso profeta.

Agora aqui sozinhos, numa cela sombria, paro para decidir o caminho que tomarei perante um juiz canalha, um promotor cafajeste, um advogado que é uma consciência de aluguel, perante a mim mesmo. Mesmo você que partiu para a colaboração entulhada de mentiras, só fez exercer sua liberdade.

Eu, de meu lado, também me sinto livre para pegar uma sentença pesada. Afinal, toda pantomima requer um bode expiatório e este sou eu.

É tarde demais, agora sempre tarde demais. Felizmente!

 

em destaque, Camus chegando ao Brasil em 1956. Acima, capa de seu diário de viagem no qual confessa-se surpreendido com a riqueza cultural do Brasil e o poucio tempo dispendido por escritores famosos para produzir sua obra.