*Alexsandro Alves
O princípio do prazer, o desejo, e seu término, a satisfação, se ligam pela crueldade. O que há de mais prazeroso na vida? A mesa. Cascudo já dizia que “todo o trabalho do homem é para sua boca”. E a mesa é o palco de nossas crueldades cotidianas, aquelas que nos tornam humanos. Basta admirarmos a beleza de nossos caninos brancos, há neles a mesma beleza do sangue do olhar dos lobos. A mesa, mesmo a nossa mesa domesticada, carrega a ancestralidade das matanças primevas transformadas em festins de corpos inocentes silenciados, agora bem-dispostos sobre toalhas brancas e higienizadas, após passarem por rituais que envolvem gargantas cortadas, pancadas na cabeça e torturas físicas e psicológicas. A nossa satisfação à mesa é sempre precedida pelo sangue, por isso que comer acompanhado é sempre melhor: é a memória ancestral da matilha.
Um dos pratos prediletos é a vitela. Que é a carne de bezerrinhos que são separados bem cedo de suas mães e mortos a golpes de cacetes. Esses golpes racham seus crânios. O “ruim” mesmo é quando mão morrem na primeira cacetada. Não sei se o sabor fica melhor com mais ou com menos cacetadas, porém, de qualquer forma, a carne é mais saborosa nessa idade. E as galinhas? Com suas gargantas cortadas e suas vidas aos poucos se derramando. Há os que apreciam à cabidela, que consiste em ferver a ave em seu próprio sangue. Há também a tortura que produz sabores refinados, para poucos. Os corpos torturados de gansos e patos, por exemplo. O “foie gras” é um fígado de aves aquáticas, como o ganso e o pato, mas não é um fígado qualquer. É um fígado com esteatose hepática, uma doença que é intencionalmente provocada. Os criadores forçam a ave a engolir, mecanicamente, através de um tubo de metal que é enfiado goela abaixo, uma grande quantidade de comida. Isso aumenta o tamanho do fígado – normalmente um fígado de pato tem 76 gramas, mas para produzir a iguaria, o fígado aumenta seu peso para quase 700 gramas. Esse desconforto, esse desprazer, esse sofrimento, produzem uma das mais refinadas iguarias francesas.
A nossa boca é testemunha de todas essas agradáveis e necessárias crueldades! E sendo assim, qual o sentido de uma mesa vegetariana?
Ontem, dia 25 de setembro, lá estava eu em casa de Franklin Jorge. Eu e mais alguns amigos do escritor fomos convidados para um café. E na mesa desse que tem o olhar marcante e a voz serena e profunda de violoncelos, iguarias vegetarianas. Franklin Jorge não é apreciador de carnes. Estava tudo delicioso, de fato. Os sabores picantes, os cheiros verdes, os patês de legumes. Sua cozinha é maravilhosa. Até quando erra. O bolo de pamonha, segundo disse, faltou um ingrediente, por esquecimento. Mas estava delicioso. Tudo o que as mãos de Franklin produzem é bom e satisfaz. Dos livros aos pratos. Não é a primeira vez que provo e aprovo sua cozinha.
Mas e a crueldade? Se Cascudo estava certo quando disse que todo o nosso trabalho é para a nossa boca, a crueldade não pode sair dela. E lá estava ela, na língua de nosso anfitrião. Sentado em sua cadeira de balanço, com adoráveis gatinhos acariciantes, cercado de plantas de seu grande jardim, sob um caramanchão, aquela língua saborosa de crueldade serviu-nos os mais deslumbrantes pratos. Ai daqueles animais abatidos! O brilho de seu olhar e a escuridão de sua voz parecem sair de parágrafos de Oscar Wilde ou Marcel Proust. Como eu aprecio, tal alimento para meu corpo, as narrativas cheias de leveza irônica, de infindável inteligência e humor bem dosado, bem medido, bem calculado de toda essa crueldade, posta com tanta delicadeza, com tanta leve convicção e refinamento. Substituir a crueldade da mesa pela crueldade da inteligência, só prova uma coisa: o homem necessita da crueldade, sobretudo à mesa, venha de onde ela vier.