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A degeneração da arte: crítica

Está ocorrendo na Pinacoteca a mostra A degeneração da arte, do coletivo Dandara, composto pelos artistas Aluísio Azevedo Jr., João Andrade e Alfredo Neves. A exposição vai até o dia 31 de julho.

*Alexsandro Alves

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Ao observar cada quadro presente nessa exposição, me tomaram sentimentos e pensamentos muito conflitantes. Qual o papel da arte? Foi o leitmotiv que me guiou em cada vez que parava diante das obras expostas.

E assim, pude dividir essa exposição em duas categorias diferentes: a arte e a decoração.

Aluísio Azevedo Jr., sem dúvida é o único que não decepciona no quesito arte. Os outros dois estão bem colocados no decoração.

Seguindo a proposta da ordem de apresentação das obras na exposição, inicio com os quadros de Aluísio Azevedo Jr.

 

Aluísio Azevedo Jr.

Ele poderia ter exposto sozinho, de certa forma, mas a proposta é apresentar a degradação em muitos níveis, do material ao imaterial, da carne para os sentimentos e do social para o inconsciente. Caminhando pelos quadros dos três artistas em sequência tem-se essa sensação.

A exposição abre com as obras Selva, Piedade e Avenida Paulista. Vistas em sequência, formam uma narrativa que já vale a nossa permanência. O artista, trabalhando em um verde e amarelo vivos, que têm toda a carga de comunicar assim, instantaneamente, sua mensagem, porque é um artista político, carrega na denúncia e na objetividade. Seus personagens se assemelham aos de Jamie Hewlett – porém, com fortes doses de crítica e denúncia de uma sociedade opressora. São favelados que passam fome, crianças que perderam a infância, indivíduos anônimos assassinados.

 

Da esquerda para a direita: Selva, Piedade e Avenida Paulista

 

Aluísio Azevedo Jr., escolhe ângulos inusuais – ora, uma arte que se propõe a ser um grito em favor dos excluídos não poderia fazer menos. Mas esses ângulos não estão à toa ou apenas para causar uma impressão. Nas três primeiras telas, essa angulação estranha encontra exatamente sua culminância em Avenida Paulista em que corpos retorcidos compõem uma espécie de dança macabra entre o sono e a morte.

 

Avenida Paulista

 

No centro, Piedade, uma releitura socialista de um tema cristão. O corpo de uma criança nos braços de sua mãe, possivelmente negra, em uma escadaria. A tela transmite um profundo deslocamento das questões religiosas para questões econômicas e sociais. Os pés e as mãos, desproporcionais, podem ser símbolos do trabalho e da necessidade.

 

Piedade

 

Mas mesmo que o artista trabalhe com fortes doses de realidade, ainda há um certo romantismo em sua obra, uma idealização, digamos. Corisco, uma releitura do cartaz do filme de Glauber Rocha, apresenta o cangaceiro como um homem negro atrás das grades.

 

Corisco

O amarelo é o tom predominante de suas telas. Excetuando-se Gerando Urubus, em que tons mais escuros predominam. Essa tela, com suas pinceladas espessas e seu tom mais sombrio, embora figurativa, pode enganar em um primeiro momento, sua mensagem se movimenta em expressionismo abstrato para aos poucos se harmonizar figurativamente, é uma das melhores telas da exposição.

 

Gerando Urubus

 

Pela variedade de acontecimentos, Infância Roubada é um mosaico. Um menino caminha por uma estrada de sangue e de cruzes, atrás de si, pneus incendiados. Ele olha para um homem fardado a sua frente, enquanto outros personagens, em meio a uma lagoa – ou enchente, parecem alheios ao ódio e à tristeza do garoto. Pictoricamente, três espaços são delimitados: o vermelho para o garoto, o amarelo, muito intenso para boa parte das construções de sua comunidade e a frieza azulada à direita, enquanto um militar abandona a cena.

 

Infância Roubada

 

A força da obra de Aluísio reside nessas intersecções entre a agressividade de uma realidade plena de horror que se acha em qualquer esquina dos grandes centros e a denúncia, não menos violenta, de tais situações como propostas temáticas de seus quadros. Esteticamente, confluem em sua obra correntes artísticas diversas, seus quadros dialogam não apenas com a realidade, mas também com o que, artisticamente, desemboca no estuário das tradições da pintura, se o artista não está alheio ao mundo social e político, ele interpreta esse mundo seguindo tradições consolidadas.

João Andrade

Enquanto artistas plásticos, Alfredo Neves e João Andrade não convencem. O que falta nos dois, principalmente em Neves, é humanidade. É o diálogo entre proposta e espectador/público. Toda a arte é diálogo inteligível entre artista e o público. Em Andrade esse diálogo se perde em cores tão vivas, que as propostas de seus quadros, por exemplo, Possessão  ou Incerteza

Possessão

 

Incerteza

carecem daquele encontro peculiar que marca a obra de seu antecessor. Além disso, é muito questionável a paleta de cores de Andrade, com seus verde-limão e rosa berrantes que nos atingem de uma queda pequena na ponta dos lábios a um certo desinteresse crescente. É tudo industrialmente pop e esteticamente tolo. É essa arte conceitual. Que não passa mesmo de uma manifestação industrial, essas obras não possuem a aura que torna uma obra de arte única. Objetos semelhantes se encontram em vários consultórios e supermercados de Natal. O conceito por trás desse tipo de arte nega uma das funções centrais da arte, a humanização.

Propostas estéticas como as de Andrade desumanizam, porque esvaziam o conteúdo, o entendimento e a comunicação. Não é demais lembrar que tais propostas estéticas são estadunidenses. São frutos estéticos de uma sociedade desumanizadora em sua essência.

Alfredo Neves

O expressionismo abstrato, que tem em Jackson Pollock um de seus grandes nomes e na técnica de gotejamento um recurso recorrente, é um subproduto da rapidez e da alienação que o capitalismo insere dentro da vida. Apenas em sociedades alienantes como a capitalista, esse subproduto ganha status de arte. E muitos acreditam.

Em Neves também falta coerência entre a proposta e sua realização. Porque em Neves não existe essa ligação. É dito que Neves, enquanto pintor: invoca um sentido ótico relativo à própria natureza do objeto, independente da consciência. É tentar explicar o que de fato não se alcança.

O palavreado elegantemente caótico apenas disfarça o que de fato não se traduz na consciência humana. A arte de Neves não dialoga com nossa consciência, com nossa humanidade. No máximo dialoga com nosso olhar. Mas ficamos como cachorrinhos desejosos de compreender a nova brincadeira do dono, torcendo e torcendo o pescoço para lá e para cá sem nada entender. Basta ver uma tela de Pollock, e já se viu todas.

E como assim, independente da consciência? A natureza do objeto, qualquer objeto, é humana. Não está lá. É produto racional e consciente de um ato humano investigativo. Essa independência da consciência sobre o objeto, colocaria o objeto em uma posição acima do humano? Mas quem confere significado ao real é exatamente o humano. A realidade em si não tem significado próprio ou vida própria, ela é sempre a partir da consciência humana sobre ela.

De forma que a arte de Neves é alienação. Desvincular a consciência humana do objeto na arte, e tratar seu produto enquanto arte, partindo do início da proposta da exposição com Aluísio (que a realizou extraordinariamente), é o mesmo que um trabalhador na linha de montagem de uma fábrica – ele não sabe como aquele produto final foi terminado, não conhece os meios e os outros setores da fábrica e o produto de seu trabalho, além de alienante, e por isso mesmo, é impessoal.

Essa impessoalidade é o que a obra de Neves transmite. Daria certo como item de decoração em uma sala de reuniões de uma grande empresa, com seus gerentes cercados de números e números. A tela colocada numa parede, servindo para preencher o vazio com outro vazio. Essa é a essência do expressionismo abstrato.

 

Planeta esquecido

 

Abstrato 668

Planeta esquecido Abstrato 668 poderiam trocar de nomes com tranquilidade que no fundo ninguém notaria. Uma arte como a de Neves nunca fala por si, sempre precisa do conceito. É o conceito que injeta significado no lugar próprio do que já nasce do não-significado. Do esvaziamento de tudo.