• search
  • Entrar — Criar Conta

A descoberta do corpo

Ao completar 40 anos, Fundador de Navegos recebia em Rio Branco, Acre, a visita do autor de Faz escuro mas eu canto, que o iniciou nos mistérios dessa idade que lhe traria surpreendentes descobertas, como a consciência do próprio corpo.

*Franklin Jorge

Recebia a visita de Thiago de Mello em Rio Branco quando completei 40 anos. Lembro-me que tive a ideia de ir passar a noite na casa de um amigo, para fugir a uma possível comemoração dos meus colegas de trabalho no “Complexo de Comunicação O Rio Branco”, que então eu dirigia. O poeta aquiesceu em acompanhar-me, após inteirar-se dos meus motivos, sem sabermos que a festa havia sido organizada justamente na casa onde eu pretendia fazer a data passar desapercebida, por dois motivos: por não gostar dessas comemorações e sobretudo para não impor a funcionários humildes gastos desnecessários com presentes, como eu vira tantas vezes durante os meus cinco anos de serviço público na Fundação José Augusto, onde os funcionários eram coagidos a presentear o chefe e a participar, até, de uma missa de ação de graças pela saúde e prosperidade de sua excelência…

A caminho da casa de Rociberg Leandro, Thiago dizia-me que a partir dessa data coisas extraordinárias ocorreriam em minha vida. Que os quarenta anos marcavam o começo de uma importante etapa da vida de um homem, especialmente de um homem que se dedicava a escrever em busca da essência mesma da vida… Fomos a pé, conversando nesse tom, por ruas mal calçadas e precariamente iluminadas de Rio Branco, sob um céu claro, de setembro.

Um escritor que morre antes dos quarenta anos, morre como um projeto, não como um escritor plenamente realizado, pois como tudo na vida o ato de escrever é também de experiência feito etc. Como sempre, opus argumentos contrários à sua tese e ele me disse que, não somente no plano intelectual, em termos estritamente pessoais e físicos, quarenta anos acarretam incontáveis mudanças na vida de um homem. Desafiei-o a apontar que mudanças seriam estas e o que eu podia esperar do futuro, agora que estava completando naquele dia quarenta anos sem perceber em mim, aparentemente, nenhuma transformação, a não ser a consciência de que envelhecia sem ter uma obra que justificasse a minha existência. Esta era, naquele momento, minha única preocupação. Não ter uma obra que me justificasse no futuro…

Thiago, de quem fui leitor antes de nos tornarmos amigos, já me emprestara versos seus para epigrafe de um livro; agora me emprestava a sua própria experiência, introduzindo-me na metafísica dos quarenta anos, também para a grande escritora Marguerite Yourcenar uma idade que assinala o primórdio de uma fase significativa, quando, após termos experimentado as empolgações da carne, parecemos aptos a mergulhar em busca de profundidades abissais.

Passadas quase duas gerações dessa conversa – e a conversação é em Thiago de Mello como que a síntese de todos os seus singulares e variados dons artísticos –, recordo-me que lhe pedi que me oferecesse um exemplo banal e corriqueiro dessa particularidade que distingue essa idade das outras e ele, como sempre paciente e bem humorado, como um dos reis sem-terra da poesia, disse-me que a partir dessa idade eu faria, entre outras, fabulosas descobertas, como a de possuir conscientemente um corpo! “Pode parecer-lhe pouco, mas daqui pra frente você não mais poderá ignorar que tem um. Você vai sentir que tem colhões, unhas, nariz, orelhas…”

Em destaque, detalhe da mesa desenhada por Thiago de Mello como presente de aniversário dos 40 anos de Franklin Jorge, em Rio Branco (1992); acima, o poeta, o Venerável Albérico Batista, o aniversariante e a mesa.