*Francisco Alexsandro Soares Alves
Os motivos são vários e sopram no pó da História, o Brasil é uma esquina. Por aqui, gente que nunca se falava, trocaram memórias. O jê encontra o fon, o trasmontano dialoga com o alentejano. Como uma estação continental, essa terra foi passagem para uns e permanência para outros, porém todos, todos se cruzaram, todos deixaram seu sangue, seus saberes e seus fazeres nesta terra.
O africano chega aqui como escravo. Era praticamente impossível escravizar os indígenas. Dizia-se que o índio não trabalhava. De certa forma, há razão nisso. Porque o tempo indígena é diferente do tempo europeu. Porque o indígena não é escravo sequer do tempo. O tempo passa e o indígena descansa, mesmo quando caça, mesmo quando pesca, seu tempo é que nem maré mansa, chega inevitável, não há tempo marcado, há tempo vivido. Nunca seriam escravos. Preferiam a morte, e assim foi.
Com o africano foi diferente. Não porque o africano fosse por natureza escravo. Mas porque, ao desembarcar por aqui, terra estranha, nada mais tinha ou conhecia. Muitas vezes, sequer saúde tinha. A conquista dos quilombos ainda estava distante, porém as fugas e recapturas tornavam o negro experiente na mata tropical densa e assim, conhecimento era passado de irmão para irmão na senzala. Saberes sobre frutos bons e frutos danosos, caminhos, sinais, tudo era passado ao irmão. Não havia derrota definitiva. Havia espera. Se nunca fosse encontrado, estava livre – mas se fosse reconduzido à senzala, voltava conhecedor do ambiente. Na fuga ou na volta às correntes, a libertação se desenhava pouco a pouco.
Porém o negro logo se adapta. E essa adaptação, como que uma necessidade de algo que estivesse por vir, uma visão de liberdade que nunca abandonaria a senzala, também abarcou o alimento, inclusive o alimento dos orixás, que foi modificado para que abarcasse a nova realidade. A carne e o espírito da África, como o forte, se adaptava ao que lhe fora dado.
O arroz de hauçá é um prato africano que foi adaptado aos ingredientes da nova terra e assim foi também incorporado ao terreiro. Na África, era comida apenas da cozinha. Aqui no Brasil, divide espaço com o terreiro. E nesse caso, Obaluiaê-Omulu, é quem recebe o despacho.
O arroz de hauçá tem como ingredientes principais arroz e camarão, é o encontro da terra com as águas e espelha a vida do orixá.
Quando Obaluaiê nasceu, sua mãe Nanã teve nojo do filho, porque nasceu com o corpo coberto de feridas, por conta da varíola. Nanã resolve jogar o bebê no rio para que se afogue, mas o rio deságua no mar e Iemanjá o adota. Ao crescer, devido ao seu aspecto, cobre-se com longas folhas, da cabeça aos pés, de maneira que ninguém veja sua real aparência. É o orixá da terra, dos vulcões e também da doença. Pode matar e pode curar.
No Brasil, as crianças dos orixás aprenderam a fazer acarajé de maneira diferente. Na África, a iguaria era feita a partir de massa de grão-de-bico. Por aqui, na falta do grão-de-bico, o feijão-preto o substituiu, e de tal forma, que hoje na África se come acarajé de feijão-preto, sobretudo.
A alimentação do africano era baseada em farinha de mandioca, banana e peixe – ou outro fruto do mar. A ideia de que comiam feijoada é falsa. Nem mesmo é africana essa iguaria, que é o mais brasileiro de todos os pratos. Sua origem é portuguesa, e era, em Portugal, comida da gente rica. As partes do porco usadas para compor a feijoada, pés e orelhas, eram muito valorizadas pela elite portuguesa, que jamais ofereceria – como nunca ofereceu mesmo – um prato refinado como esse para a senzala.