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 A estrovenga lírica

Fundador de Navegos, desossa a carcaça, já bastante decadente, do nosso maior poetastro, através de um livro encontrado nos porões escuros do ostracismo, livro que o fez, ao mesmo tempo, rir e lamentar a situação de nossas letras, tão empavonadas por uma maçonaria sem qualificação literária.

*Franklin Jorge

[email protected]

Vasculhando o conteúdo duma velha caixa, havia muito esquecida em um depósito, talvez por 40 ou 50 anos, deparei-me com uma montoeira de livros em prosa e verso que ali jaziam no esquecimento e na falta de uso. Embora a maioria estivesse em bom estado, aparentemente sem serventia; certamente terei pensado, na época, descartá-los, talvez pela platitude e frivolidade do conteúdo, por seus autores – para mim sem crédito nenhum – ou por não se enquadrarem em meus fundamentos estéticos – o que me terá impedido de doá-los a uma biblioteca para o desfrute de outros leitores.

Folheando-os, a princípio enfadado e distraidamente, tive essa suposição francamente confirmada à medida em que avançava em minha curiosidade ledora – essa tal curiosidade que, na opinião de Ezra Pound, produz a arte.

‘Leitor hipercrítico’, segundo a boa fé dos mestres Ascendino Leite e Antônio Carlos Villaça, não teria eu a desfaçatez de doar a uma biblioteca de uso comunitário obras ou autores que não contribuíssem, a meu ver, para o enriquecimento intelectual do leitor ou que, por seus equívocos, pudessem desviá-lo para platitudes vaidosas impressas em livrecos como “Um dia, os mesmos dias”, pseudo novela que, por sua insipidez contagiante, curou-me de uma insônia pertinaz que me acossava havia muitos anos. Por isso recomendei  ao autor enfadonho, Francisco Sobreira, que em vez de livrarias passasse a colocar sua obra à venda, não nas livrarias mas nos balcões de farmácias e drogarias…

Confesso quão me diverti revisitando, tantos anos depois, nossos beletristas provincianos, como Gumercindo Saraiva, Enélio Petrovich, Alvamar Furtado de Mendonça, Esmeraldo Siqueira, Franco Jasiello, Meira Pires, Valério Mesquita, Manoel Onofre Junior, Padre Eymard L. Monteiro e uma enfieira de poetastros que tiveram em tempos idos seus cinco minutos de fama.

Detive-me, porém, na leitura de um poeta de estro roto, conhecido por sua exorbitante vaidade, capaz de desovar versos que tais:

”Quem sou?

– Um menino que comia coração de beija-flor…”

Ao lê-lo, desprevenidamente, fui assoberbado por uma sensação de desconforto moral e incredulidade. Como um poeta seria suficientemente perverso para devorar o coração de um beija-flor? Por sua natureza, antipoética e inumana quedei-me a um tempo perplexo e desencantado ao deparar-me com os maus instintos de alguém que posava de poeta. Lembrei-me então do grande Jorge Luís Borges, que em um dos mais belos versos que inventou, foi-me dada a graça de ler alguma vez esse achado fenomenalmente poético: ”inocente como os pássaros…”. Síntese que só podia sair da cachola de um ente verdadeiramente bafejado pela Poesia.

E, para lascar o caíco, expressão muito usada pelo povo sertanejo para expressar o inominável, mais este mau exemplo de surrealismo verbi-gráfico:

“Se eu fosse o rei da China

Teria um burro mongol

Cantava pelas esquinas

Lua quatro vezes sol…” Eca!

O pior estava por vir: O poeta em questão tem veleidades metafisicas e as expõe sem decoro ou cometimento algum, declarando de soslaio sua insuficiência ledora e uma fática incompreensão do fenômeno estético:

“Porque Deus existe:

Todo homem é

Ator…”

Mais do poetastro, benza-o Deus:

“A poesia -afinal-

-Esperma

Espiritual’…”

Já o beijo é assim transfigurado em versos incongruentes:

“Beijo

Músculos

Sem

Mácula:

Âncora…” Sem dúvida, uma obscenidade impoética.

E, não satisfeito com tais distúrbios pseudopoéticos que beiram uma profusão hidroeletrolítica de estro fétido, essa definição do que é poesia, vista assombrosamente por ele como um ‘’Encosto’’:

“A poesia

Espiritismo

Com lirismo…”

Sinto ter de declinar o título do livro em questão e seu autor: ”Instrumento dúctil”, e Diógenes da Cunha Lima, um desgarrado da Poesia. Fundação José Augusto, Natal, 1975. Prova cabal e insofismável do baixo nível da produção poética que ultraja a inteligência da ‘’Terra de Poti’’