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A feira de João Câmara

A feira, popular e multitudinária, é retratada aqui, por nossa mais constante Colaboradora, que a conheceu desde menina, por ela passeando e descobrindo o mundo

*Nadja Lira

Uma das melhores lembranças que guardo da minha infância está relacionada aos dias de Sábados – dia de feira em João Câmara, cidade onde nasci e vivi alguns dos melhores momentos da minha vida. O dia de Sábado era especial na cidade por inúmeras razões: a primeira delas era a feira, que começava na madrugada da Sexta. Depois vinham os batizados, os casamentos e os bailinhos no Baixa-Verde Esporte Clube onde dancei pela primeira vez.

Localizada na microrregião do Mato Grande e contando com mais de 30 mil habitantes, João Câmara é uma Cidade Pólo, motivo que transforma a sua feira em um grande evento, arregimentando pessoas de vários pontos do Estado. A feira, portanto, era uma das maiores do Rio Grande do Norte ocupando várias ruas da cidade e onde se vendia de tudo. Feira no interior é sinônimo de festa. É como se passar um dia inteiro dentro de um shopping. Guardando as devidas diferenças, é claro.

Na época em que eu era criança, esta festa se estendia até às 19:00 horas e no meu universo infantil, o que havia de mais atrativo naquele evento, era o colorido das lonas que cobriam as inúmeras barracas e que podiam ser vistas ao longe. Era justamente nos dias de feira, que as famílias residentes nas áreas mais distantes do centro realizavam os batizados das crianças e os casamentos de seus filhos. Nessa época, a cidade não dispunha de médicos permanentes.

O atendimento à população era realizado aos Sábados, por médicos que vinham da capital. As filas de pessoas esperando por atendimento eram quilométricas. Outra fila enorme era formada diante do único consultório odontológico de então, onde o dentista José Maria atendia a todos os que procuravam seus serviços. Entre as barracas da feira, o barulho era enorme, porque os feirantes anunciavam entre gritos, os produtos que vendiam. Uma banca, em especial, chamava a minha atenção: a banca de Seu Lelê – o vendedor de revistas e livros. Era ele quem ficava com a maior parte da minha mesada

Guardo boas lembranças desse tempo, em que ficava encantada com a variedade de produtos colocados à venda e pela criatividade das propagandas feitas pelos feirantes. Lembro-me, por exemplo, de que certa vez, um cidadão muito bem vestido vendia um remédio, que segundo ele, era excelente para acabar com as lombrigas das crianças. O homem falava, falava, mas ninguém lhe dava a menor atenção. Então, ele perguntou a alguém como se chamava o prefeito da cidade e se ele tinha alguma filha. Prontamente responderam: Chico da Bomba tem uma filha chamada Edinha. O vendedor, então, mudou o enunciado da publicidade: “Senhoras, e Senhores, um minuto de sua atenção, por favor. Se seu filho tem lombriga é muito fácil de curar. Dê a ele um comprimido de Biparezima, por dia. Minha gente, esse remédio é milagroso. Edinha, filha de Chico da Bomba, estava cheia de lombriga. Ah menina botava lombriga até pelos ouvidos. Tomou Biparezima e ficou boazinha”.

Uma multidão havia se formado em torno do vendedor e ouvia atentamente as palavras do homem. Quando ele falou em Chico da Bomba, como num passe de mágica, todos pediam ao mesmo tempo um vidro do remédio, que não foi suficiente para os interessados. Cheio de dinheiro no bolso, o sujeito desarmou sua barraca e foi embora antes do meio-dia.

Nesse período, o pároco da cidade era Monsenhor Freitas, que ganhou notoriedade na região graças à sua brabeza e mau humor. Ele passava praticamente o dia inteiro, aos Sábados, realizando missas, batizados e casamentos. E foi justamente no final de um dia de intensa atividade na Igreja, que chegou um casal de negros vindos de um sítio distante, localizado na comunidade de Beira do Rio, para batizar seu primeiro filho. O casal, não cabia em si de contentamento pela chegada do rebento e possivelmente pensando na festa que iria oferecer aos amigos e compadres, depois do batizado. Monsenhor Freitas, que parecia ler os pensamentos do homem, olhou para ele e perguntou: “Qual é o nome do menino? ”

O pai cheio de orgulho respondeu: “Washington”. Ao que o Monsenhor retrucou: “O que? Vai botar o nome de Washington nesse negrinho? Eu não batizo de jeito nenhum”. E continuou: “Nome de negro é Benedito”. E foi assim que o menino passou a se chamar. Se um fato destes ocorresse na atualidade, o Padre sofreria um processo, sem sombra de dúvidas.

Nadja Lira – Jornalista • Pedagoga • Filósofa