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A filha dileta do Nazismo

Colaborador de Navegos, fundador do Espaço Cultural Marcel Proust, escreve sobre o “carro do povo”, o famoso “fusquinha”, uma criação do Nazismo que muitos de nós ainda desconhecemos.

*Carlos Russo Jr.

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Ao mesmo tempo em que Hitler desenvolvia seu plano para a conquista do mundo, ele também se dedicou arduamente a projetos de reconstrução uma “nova Berlim”, de “uma nova cidadania”. Na realidade, esses projetos todos eram jogos, enquanto ainda se viviam tempos de paz.

É claro que sem guerra, seus projetos seriam impensáveis, portanto a guerra fazia parte de seus cálculos desde o princípio. O III Reich, que sob a preponderância dos alemães e talvez de “todos os arianos germânicos”, deveria conduzir à escravização do restante da Terra, somente poderia ser operado por meio do terror, logo, tinha de correr sangue, muito sangue.

Pois é na proximidade entre a Construção e Destruição que reside o verdadeiramente impressionante de tal confronto do nazi fascismo com a humanidade.

As construções de Hitler tinham sempre a finalidade de atrair e reter as grandes massas.

O termo “Volkswagen”, o “carro do povo”, foi criado por volta de 1924, pelo engenheiro alemão-judeu Josef Ganz, que lutava para modernizar a indústria automobilística alemã, publicando ideias inovadoras para a produção de um primeiro automóvel realmente popular, que custasse o mesmo que uma motocicleta na época.

Em 1933, Adolf Hitler, já Primeiro Ministro, visitou o Salão Internacional do Automóvel de Berlim e viu, no projeto deste carro popular, o “Volkswagen”, uma forma eficiente de propaganda nazista e aglomeração de massa, e falsificou a história: a ideia de “carro do povo” passou a ser sua, jamais aquela, original, do judeu Ganz!

Ainda em 1934, Hitler encarregou seu homem de confiança, Albert Speer, o Arquiteto-chefe e Ministro do Armamento do Terceiro Reich, do desenvolvimento daquela que deveria ser a maior fábrica de carros do mundo: a Volkswagen!

Por outro lado, desde 1898, o engenheiro austríaco Ferdinand Porsche realizara projetos de novos designers automobilísticos. Chegou mesmo a trabalhar para a Mercedes-Benz em 1928, e em 1931, na data em que se filiou ao Partido Nazista, fundou a “Porsche Engineering”. Nazista convicto era um íntimo de Heinrich Himmler, líder da Polícia Militar Nazista, as SS.

Pois Albert Speer buscou o suporte técnico necessário em Porsche para o desenvolvimento da fábrica do III Reich para carros populares, a Volkswagen. Fez-se também constar ter partido de Hitler a ideia de um carro em forma de besouro, modelo do nazista Porsche, o qual originou a formatação do famoso “fusca”. Ferdinand Porsche foi preso ao final da guerra pelos Aliados e somente após sua libertação criou a fábrica dos carros Porsche, hoje também pertencente à Volkswagen.

Uma empresa modelo nazista – Speer desenvolveu um projeto arquitetônico colossal, absolutamente do agrado de Hitler, em Wolfsburg, uma cidade localizada na Baixa Saxônia, praticamente foi criada para ser a sede da empresa automobilística Volkswagen. Em 26 de maio de 1938, com enorme propaganda, os nazistas lançaram a pedra fundamental da Volkswagen, empresa formatada como “modelo empresarial nacional-socialista”. Ela deveria ser capaz de produzir até 1,5 milhão de carros por ano.

A Volkswagen, símbolo nazista, foi premiada com as mais variadas distinções. Ainda hoje, por motivo das diversas celebrações, assistimos à propaganda direta e indireta da demagogia reacionária pró-nazismo, que pretende ver ainda na Volkswagen dos nazistas “aspectos positivos”, a saber: “uma empresa altamente moderna, para sua época”, que gozava de “exemplares vantagens sociais para os empregados”.

De fato, operários alemães mais privilegiados eram, na verdade, simples capatazes, e assim gozavam de vantagens sociais. Dispunham de refeitório e lavatório comunitários, médico, saúde na empresa, formação técnica para o maquinário mais moderno da época. Enquanto isso, a imensa maioria — os trabalhadores e trabalhadoras forçados, prisioneiros de guerra e dos campos de concentração — tinha de executar trabalhos de escravos. De cerca de 18 mil pessoas que estiveram ocupadas pela VW durante o nazi-fascismo, apenas uma pequena proporção eram operários livres.

Com a guerra, entretanto, a produção de carros civis deixaria de ser a principal prioridade da Volkswagen e a companhia passou a produzir armamentos. Em 1939, depois de um ano de funcionamento, teve início a produção de aviões de guerra, diferentes tipos de minas (pessoais e incendiárias), veículos anfíbios e motores para tanques de guerra. A própria VW produziu em série os terríveis mísseis V1.

Para se abastecer de trabalhadores e trabalhadoras forçados, a VW fez uso de métodos extremamente brutais. Localidades inteiras foram cercadas, sobretudo na Polônia e na União Soviética. Os habitantes eram expulsos de suas casas, amontoados nas praças e deportados como gado em trens para a Alemanha. Entre estes, frequentemente, havia crianças a partir dos dez anos.

A VW utilizou campos de concentração próprios – O campo de concentração com o cínico nome de “Vila do Trabalho” foi um projeto piloto com o qual os nazifascistas procuravam averiguar e experimentar a forma mais eficaz de explorar os presos dos campos de concentração na indústria de armamentos.

Oitocentos judeus húngaros foram escolhidos a dedo, em Auschwitz, por engenheiros da VW como “capacitados para o trabalho” na produção das bombas voadoras V1.

As mulheres grávidas da fábrica eram encaminhadas para os barracões da chamada de “Maternidade da VW” pouco antes de dar à luz. Passados apenas uma quinzena do nascimento, eram obrigadas a reassumir o posto na fábrica. As crianças ficavam retidas no “Centro Maternal da VW”, onde eram assassinadas em decorrência da subalimentação, higiene insuficiente e enfermidades. Em 1944 a taxa de mortalidade alcançou praticamente os 100%.

Os trabalhadores e trabalhadoras forçados estavam expostos a um monstruoso regime de terror. A “segurança” da VW dispunha de um “bunker de castigo e reeducação” onde os agentes das SS torturavam e maltratavam os presos pelos mais insignificantes motivos. Também a Gestapo, tinha seu centro na fábrica e seu local para execuções públicas por enforcamento.

A Volkswagen, um antro de nazistas do pós-guerra – Em 1945, a Alemanha Nazista e seus aliados foram militarmente derrotados e VW passou pelo processo de desnazificação, sob a supervisão de um general norte-americano.

No entanto, mesmo sob a nova direção “democrática”, a partir de 1948, foram sendo recolocados os mesmos nazistas que, pouco antes, haviam sido despedidos no pós-guerra imediato.

Um historiador alemão* declarou: “Os nazistas, que no verão de 1946 tiveram que debandar, lentamente foram se infiltrando. Com poucas exceções voltaram a ocupar seus antigos postos ou ainda melhores… Para os que foram despedidos com antecedentes nazistas em 1945, as portas da fábrica se abrem rapidamente de par em par. Os democratas, apesar das constantes novas colocações, são sistematicamente rechaçados”.

Além disso, VW estabeleceu uma rede de esconderijos em suas fábricas, principalmente nos países da América Central e da América do Sul, para os assassinos nazistas mais procurados. Ali, centenas de carrascos, de maior e menor envergadura, permaneceram a salvo. Em uma entrevista no final dos anos 70, Simon Wiesenthal, o judeu sobrevivente também denominado de “o caçador de nazistas” afirmou: “As instalações da VW, assim como as de Krupp e Siemens eram verdadeiros ninhos de nazistas, e que ali trabalhavam centenas de pequenos ou grandes carrascos nazistas”.

Por exemplo, um dos grandes carrascos nazistas a quem a VW demonstrou sua gratidão foi Franz Paul Stangel, o comandante do campo de extermínio de Treblinka, onde em um ano e meio, sob o seu comando, foram assassinadas com gás produzido pela Bayer, mais de 800.000 pessoas. Stangel, até o momento de sua detenção, estava empregado como chefe da seção de montagem da VW Brasil, em São Paulo. Dentro da própria VW do Brasil, Stangel em cooperação com o DOI-CODI militar estabelecera um espaço para detenção e interrogatório de operários brasileiros.

Outro exemplo importante foi a declaração pública do Diretor Geral da VW do Brasil, em 1971, Werner Paul Schmidt, em que afirmou seu respaldo absoluto ao regime de terror imposto pelos militares brasileiros da ditadura. A declaração ilustra claramente o espírito da empresa criada e dirigida por nazifascistas: “Seguramente a polícia e o exército do Brasil torturam para obter informações importantes; seguramente nem sequer se seguem os procedimentos sumários para se processar os subversivos, que são fuzilados sumariamente. Porém, para ser fiel à verdade, tem-se que acrescentar algo: que sem dureza não se avança. E vamos seguir em frente”.

E a VW, assim como policiais e militares brasileiros seguiram em frente, mesmo após a redemocratização dos anos 1980.

 

Referências:

  1. *Siegfried, K-J., Das Leben der Zwangsarbeiter m Volks-wagenwerk 1939-1945, Frankfurt/Nova York, 1988.
  2. *Siegfried, K-J., Rüstungsproduktion und Zwangsarbeit im Volks-wagenwerk 1939-1945, Frankfurt, 1993.
  3. Heimatgeschichtlicher Wegweiser zu den Stätten des Widerstandes und der Verfolgung, Niedersachsen I”, Colônia, 1985.
  4. Mommsen, H. & Grieger, M., Das Volks-wagenwerk und seine Arbeiter im Dritten Reich, Dusseldorf, 1996.
  5. Initiativkreis für die Entschädigung ehemaliger Zwangsarbeiter, “Erlitten, ver-geben, nicht vergessen. Erinnerungen ehemaliger KZ-Häftlinge und Zwangsarbeiter in der Stadt des KdF-Wagen” Bode, C., “Jedermann rechts Herum!”, die Deutsche Rechtspartei (DReP) und die Wolfsburger Kommunalwahl vom 28. November 1948. Eine Untersuchung zum frühen Rechtsextremismus in Niedersachsen, Hildesheim, 1995.
  6. VVN/BdA, ed., Wolfsburg 1945: Neuanfang oder Nazikontinuität?, Wolfsburg, 1998.
  7. Weber, G., Krauts erobern die Welt. Der deutsche Imperialismus in Südamerika. Hamburg 1982.
  8. Brasilien-Nachrichten, VW do Brasil-Entwicklungshilfe im besten Sinne? Bonn 1978.
  9. “Taz”: 12 de dezembro de 1986; 19 de dezembro de 1991; 11 de agosto de 1992.
  10. PFN de IG Metall (Sindicato dos Metalúrgicos), 19 de maio de 1998.
  11. “Die Strategie stimmt”, edição especial da Volkswagen AG de 3 de junho de 1998.