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A grande sacerdotisa

Com o Festival de Bayreuth, Cosima Wagner eternizou mito wagneriano para além da morte do artista. Uma empresária nata!

*Marie Todeskino / Augusto Valente

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Todos os anos no fim de julho, no alto verão europeu, uma cidadezinha bávara se torna o endereço preferencial para o jet-set político, econômico e cultural da Alemanha – e muito mais além. Desde 1876, Bayreuth, última residência de Richard Wagner (1813-1883), é palco de um festival de ópera inteiramente dedicado ao compositor, no teatro criado por ele próprio. E também um ótimo local para ver e ser visto.

Diante da genialidade do artista – que, além de músico, também era poeta, dramaturgo diretor de cena e ensaísta – é fácil esquecer que esse evento operístico internacional é também, em grande parte, obra de uma mulher: a segunda esposa de Wagner e filha do compositor Franz Liszt.

 

                                                                                                                      Casa dos Festivais de Bayreuth, foto: DW/Boutsko

 

“Cosima Wagner transformou o Festival de Bayreuth numa instituição cultural, social e econômica. Isso é mérito dela”, afirma o biógrafo Oliver Hilmes. Após a morte do marido, em 1883, ela transformou o que ele iniciara como uma espécie de experimento numa meca cultural da sociedade europeia de então. “Já na época, os astros e estrelinhas iam se mostrar por lá. Eles só tinham outros nomes.”

A fim de dar continuidade à obra musical do marido, Cosima “inventou” a profissão de diretora de festivais e assumiu as rédeas do teatro na “Colina Verde”, como é apelidado o local. Como ela, uma mulher nos fins do século 19, conseguiu tal feito? “Ela era francesa, uma grande dame. Falava diversas línguas fluentemente e era capaz de se comunicar de igual para igual”, explica Hilmes.

 

Mágoa e idolatria

Não só sua presença era fora do comum, mas também a sua origem. Cosima Francesca Gaetana nascera em 1837, em Bellagio, hoje norte da Itália, como filha ilegítima do compositor e pianista húngaro Franz Liszt e da condessa francesa Marie d’Agoult, crescendo em Paris.

Aos 18 anos, casou-se com o regente natural de Dresden e wagneriano ardente Hans von Bülow. O casal teve duas filhas, mas o matrimônio fracassou. Cosima estava apaixonada por outro: o compositor Richard Wagner, igualmente casado, 24 anos mais velho e 15 centímetros mais baixo do que ela.

O romance clandestino durou quatro anos e resultou em três filhos. Por fim, em 1867, Cosima abandonou Von Bülow e foi morar com Wagner – o que não impediu o maestro de seguir sendo um paladino da obra do compositor. Três anos mais tarde – com ela separada e Wagner viúvo – finalmente se casaram.

“O relacionamento conjugal de Cosima e Richard foi fortemente marcado pelo fracasso de seus primeiros casamentos. Cosima sabia que magoara Hans von Bülow incrivelmente”, prossegue o biógrafo Hilmes. Ela idolatrava Wagner como um semideus – ao contrário do primeiro marido –, anotando minuciosamente, em seus diários, os detalhes da vida e obra do artista.

 

Richard und Cosima Wagner
                                                                                                                     Casal Wagner, 1872, Viena

 

Após a morte do marido, a quem sobreviveria em 47 anos, Cosima perpetuou seu culto, erguendo-lhe um monumento póstumo na forma do Festival de Bayreuth, que dirigiu até 1906. Depois, entregou o leme ao filho Siegfried.

 

Antijudaísmo como pátria

Os contemporâneos recordam uma figura altiva. “Cosima é a única mulher de grande estilo que já conheci”, comentou o filósofo Friedrich Nietzsche. Mas ela também sabia ser bem fria e fechada. Oliver Hilmes diagnostica um “complexo de sofredora”.

“Ela saiu desse casamento com Bülow como uma mulher machucada, tinha um déficit de autoestima”, e compensava essa falta de amor próprio também através de uma atitude radicalmente antissemítica, deduz o biógrafo. Uma opinião apoiada pelo musicólogo e especialista em literatura Malte Fischer: “Cosima Wagner tinha convicções absolutamente reacionárias e antijudaicas”.

A Bayreuth da viúva Wagner não é uma instituição apenas cultural, mas também política, pois ela atraiu para seu círculo autores e ativistas de extrema direita e antissemitas. Um deles era o radical ideólogo britânico Houston Stewart Chamberlain, que mais tarde até se casaria com sua filha Eva.

Assim, o círculo de Bayreuth reverenciava a Wagner, que também fora antissemita e redigira panfletos de ódio aos judeus. “Tudo isso, Cosima e seus asseclas canonizaram após a morte dele”, conta Hilmes. “Nesse culto wagneriano exacerbado, eles encontraram algo assim como uma pátria.” Em vez de assumir suas raízes franco-húngaras, Cosima optou por um posicionamento alemão nacionalista.

 

“Ariana” cruel

Mas a “alta sacerdotisa” foi bem mais longe do que o marido em seu ódio pelos judeus. Ela transformava em atos as suas fantasias quanto à “incapacidade cultural” semita: como “Senhora de Bayreuth”, agora tinha poder para tal.

“Cosima tornou norma a política antissemítica de distribuição de papéis em Bayreuth. Artistas judeus ou não eram nem admitidos no elenco, ou só aceitos para partes bem pequenas ou negativas, os ‘papéis de judeu'”, descreve o historiador Hannes Heer, curador da exposição Vozes silenciadas – O Festival de Bayreuth e os “judeus” de 1876 a 1945.

As ideias radicais de Cosima também se refletiam em sua forma de lidar pessoalmente com os judeus. Sua postura em relação ao regente Hermann Levi, por exemplo, era ambivalente – da mesma forma, aliás, que a de Wagner. Por um lado, ela estimava muito o trabalho do músico, por outro, na qualidade de suposta “ariana”, considerava-se superior a ele. E, armada desse sentimento de superioridade, também o torturava, aponta Hilmes.

A primeira diretora de Bayreuth transferiu aos filhos a herança do antissemitismo. Sob a égide de Siegfried Wagner e sua esposa Winifred, décadas mais tarde a família se ligaria aos nazistas.

Cosima criou o moderno Festival de Bayreuth, mas também associou estreitamente o evento e o local ao ódio contra os judeus: um pecado que dividirá para sempre com o marido, Richard Wagner.