*Alexsandro Alves
Richard Wagner compôs Götterdämmerung, Crepúsculo dos deuses, entre 1869 e 1876, é a conclusão de seu épico em quatro partes Der Ring des Nibelungen, O anel dos nibelungos. Um épico que levou 26 anos para ser concluído e engloba todas as fases criativas do compositor.
Crepúsculo dos deuses é amplamente conhecida por suas passagens orquestrais, como Amanhecer, Viagem de Siegfried pelo Reno ou a Marcha fúnebre, que entraram para o repertório das salas de concerto. Sua conclusão é um poema sinfônico.
A cena final da obra, conhecida como Imolação de Brünnhilde, é uma das maiores glórias wagnerianas. Nela estão contidas a primazia da orquestra, que sempre caracterizou Wagner, o canto longo, lento e poderoso que não raro entrega às vozes nesses momentos decisivos e as complexas exigências cênicas, que no Anel são uma constante, mas que nos dias atuais, em que o teatro minimalista predomina, nem sempre são seguidas à risca, nem mesmo em Bayreuth.
Após Siegfried ser assassinado por Hagen, Brünnhilde ordena aos vassalos que construam uma pira para que o corpo do herói seja cremado. Ao ser ateado o fogo, retira o anel do dedo de Siegfried e o coloca em seu próprio dedo, se precipitando nas chamas, juntamente com seu cavalo Grane. Ela espera que o fogo limpe a maldição do anel. A força das chamas atinge o Walhalla, enquanto um terremoto provoca a invasão das águas do rio Reno, que inundam a cena. Ao fim, as ondinas exibem o anel, que retornou, por fim, ao fundo do Reno, quebrando a maldição. Esses momentos finais, a partir da precipitação de Brünnhilde às chamas até o momento em que as ondinas mostram o anel recuperado, é o poema sinfônico final, uma música grandiosa que alterna momentos de fúria, como a música para as chamas e para a inundação, com momentos líricos, quando o anel é mostrado pelas ondinas, a música é o motivo da Redenção pelo amor, lírico e terno, nos violinos.
A cena inicia com a linha melódica executada pelas madeiras sob o motivo do Poder dos deuses. É uma linha melódica marcial, de comando e autoridade, lembra uma marcha militar de flautas, clarinetes, fagotes e trompas. Brünnhilde, agora ciente da maldição do anel, conquista, por si própria, sua emancipação. Na Valquíria, ela foi a filha predileta de Wotan, punida pelo deus com o sono mágico ao ser encarcerada em uma prisão de fogo; em Siegfried foi despertada pelo herói; agora, no Crepúsculo dos deuses, através da compaixão, torna-se a detentora do destino do mundo.
Após o início nas madeiras, ela comanda: Starke Scheite schichtet mir dort am Rande des Rheins zuhauf! “Empilhem toras fortes para mim, lá, à beira do Reno!” Brünnhilde domina a linha com altivez e eloquência, ela é o centro, a orquestra inteira a serve nesse momento.
No entanto, ao olhar o corpo morto de Siegfried, canta: Wie Sonne lauter strahlt mir sein Licht, “Sua luz sorri e brilha para mim mais alta que o sol”. Nesse momento, o tom marcial anterior é substituído por uma música saudosa em que os violinos têm a primazia da execução. Mas ainda é um momento de dor e turbulência, afinal, o herói também a traiu. E a partir de Wißt ihr, wie das ward? O ihr, der Eide ewige Hüter!, “Vós sabeis como isso ocorreu? Ó, vós, eterno guardião dos juramentos!”, conversa, a partir desse instante, com seu pai.
Até certo ponto, a música desse momento é uma recapitulação da cena de Brünnhilde com sua irmã Waltraute no primeiro ato, a Narrativa de Waltraute. Mas na Narrativa, Waltraute fala sobre Wotan, agora não. Brünnhlide fala para Wotan nos termos dela – a busca por essa música do primeiro ato traz consigo novas percepções para o drama. Brünnhilde sabe da miséria e da solidão do pai, porque a música é a que acompanhou Waltraute quando esta detalhava o sofrimento de Wotan. Porém as palavras do canto de Brünnhilde são outras. São de acusação e de insubordinação contra o pai – o sofrimento de Wotan foi ocasionado por ele mesmo. E por conta dos caprichos de um deus, apenas a destruição de toda a ordem existente pode redimir o mundo do sofrimento. Todos os deuses precisam morrer, inclusive a própria Brünnhlide, que mesmo emancipada, tornada mulher pela sabedoria, como afirmou um pouco antes, ainda faz parte do velho mundo.
E assim, após retirar o anel do dedo de Siegfried: Mein Erbe nun nehm’ ich zu eigen. Verfluchter Reif! Furchtbarer Ring! “De meu tesouro agora tomo posse. Aro terrível! Amaldiçoado anel!”, atiça o fogo na pira e junto com seu cavalo Grane salta em sua direção, sendo consumida pelas chamas.
Desse instante em diante, a narrativa é da orquestra, que executa uma rede de motivos condutores, formando um poema sinfônico que serve como epílogo ao drama. Com todo o cenário destruído pelo fogo e os deuses mortos, a cortina se fecha enquanto a orquestra executa o motivo da Redenção pelo amor.
Abaixo, um vídeo com a cena. A produção é da Casa dos Festivais de Bayreuth, gravada em 1992, Daniel Barenboim, regente; Harry Kupfer, diretor; Anne Evans, Brünnhilde e Philip Kang, Hagen (segurando a lança com a qual matou Siegfried).