• search
  • Entrar — Criar Conta

A importância do vapor

“Às vezes me pego fazendo o cotidiano, como qualquer pessoa que se reconhece no mundo pelo fato de ser cotidiano.” Em seu retorno a Navegos, Elicio Nascimento escreve sobre o cotidiano

*Elicio Nascimento

[email protected]

 

Às vezes me pego fazendo o cotidiano, como qualquer pessoa que se reconhece no mundo pelo fato de ser cotidiano. Afinal, noventa e nove vírgula noventa e nove por cento das pessoas não mede as importâncias ou desimportâncias que deixarão. Apenas seguem suas vidas certos de que são como quase todo mundo no mundo e, por isso, talvez possuam alguma certeza através da incerteza de qualquer certeza, pois estão ocupados demais em sua busca por ausências que preencha qualquer presença. Assim, estão alheios a tudo o que lhes importune ao ponto de deixar de ser bons cotidianos, como quase todos os demais.

A verdade é que a imensa maioria de nós se esforça, sem esforço, para viver seus agoras e amanhãs da forma mais anestésica possível, embora reconheçam (não precisa ser um gênio pra isso) a inevitabilidade da dor, mais cedo ou tarde. Dor que possui inúmeros graus e definições, a depender do contexto. Pensar em sentido e significado é dolorido ou estou equivocado? Ao final desse breve devaneio volto aos meus inícios. Lembro-me de quando tinha a certeza de que poderia mudar o mundo. Ah! O sol tinha outra potência, o ar outro sabor o amor, novas oportunidades. Aos mais velhos devotei a importância de gente passada que deveria dar lugar aos novos revolucionários, gente capaz de dar ao movimento de rotação terrestre um novo curso rumo ao planeta novo a partir de nós. A história seria reescrita, ou melhor, reiniciada do exato ponto onde os meus ideais se dessem por satisfeitos, desconsiderando totalmente as vivências ao meu redor, embora imerso na clareza de suas exatidões. Em nós, os novos jovens, existiam respostas prontas a todas as perguntas feitas durante milênios, interrogações à raça humana por uma busca existencial rumo a uma existência, ao menos, elementar que deportasse seu caos ao fim do mundo anterior mais próximo. Sim, tudo era muito mais simples, até a chegada ao exato ponto onde estou. Cotidiano. Certo da minha irrelevância. Acostumado a ser mais um produto do costume, não me refiro a um bom costume. Bem, dos noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos que se acostumam, há alguma distância aos cem por cento dos humanos. Decimais de uma porcentagem inquieta. Humanos indiferentes ao comum, embora tenham sempre algo em comum aos demais. A diferença deles se encontra no criar. Descobrir. Questionar. Desafiar. Conquistar. Imprimir algo próprio no mundo, tão imerso no cotidiano proprietário das multidões. Cotidiano dissimuladamente opressor dos que transformam seus mundos interiores. Alguns ousaram tornar seu ordinário extraordinário. Penso sobre isso ao final de mais um dia absolutamente comum. Será que finalmente entendi como posso ser relevante a partir da minha irrelevância? Até que ponto as anestesias sociais incomodaram seus verdadeiros revolucionários ao nível da escolha pela dor da inquietação? Você também sente, como eu, saudade do que nunca foi ou viveu? Os vapores da
nossa existência podem deixar marcas inapagáveis nos trajetos da História ou evaporar até nunca mais, como uma existência inexistente. Dessa provocação surge um novo costume: o de se acostumar ao descostume, refiro-me ao sublime hábito de não ser mais um cotidiano entre os demais.