*Edgar Barbosa
1 – In memoriam…
Por três vezes saiu Dom Quixote em aventuras. A primeira, sozinho, e as outras duas acompanhado do seu judicioso escudeiro. Depois daquele ano de 1615, como Dom Quixote profetizara trinta milhões de exemplares para a sua história, inúmeros circunstantes ambiciosos se atravessaram na atropelada marcha do cavaleiro e pretenderam de qualquer modo participar das suas glórias. Fui um dos que chegaram tarde demais e hoje só me posso lembrar de que também estive, nos meus tempos heróicos, no planalto rumoroso da Mancha, que Cervantes projetou mais além, na região universal do humano.
O ciclo vital da fantasia se exaure depressa, ao calor da radiatividade ambiente, e um invisível contador alerta o audacioso com as mesmas palavras do fidalgo, quando queriam renovar-lhe as ilusões já perdidas e que foram o alimento substancial da sua existência: – “Em los nidos de antaño no hay pájaros hogaño”. A frase da agonia do herói encerra para mim um julgamento, porque as letras e as artes luminosas da Espanha não se esbatem na penumbra dos quartéis de inverno.
“Nos ninhos de outrora, não há pássaros novos”. Entretanto, a aventura é sedutora. Quem se abalança a viajar com Dom Quixote não vê montanhas onde o sol se esconda. Os vinhedos, os olivais que recobrem a meseta espanhola, lhe devolvem uma réstea da luz que se ia apagando. O velho Palágio abandona a capital do seu reino e volta ao ninho asturiano, a viver com os pastores encantados. A aura que emana da juventude do mundo acaricia a imaginação com o seu vapor azulado e a paisagem livre da mortalha das brumas nos investe o coração daquelas armas que jamais se renderam na história da península, a fiel tenacidade e a inflexível arrogância.
Ai de nós, no dia em que, pelo simples receio do insucesso, fugirmos à fascinação do perigo.
2 – Marcha histórica de Quixote
Bem sabeis que Dom Quixote não tratava com juizes, preferindo acompanhar-se de guerreiros e gigantes de cujos ombros decolava para as arremetidas da sua malograda loucura.
Certo dia, numa clareira da Serra Morena, disse a Cardenio: – “Queira Vossa Mercê ser servido de vir comigo a minha aldeia – que ali lhe poderei dar mais de trezentos livros que são o regalo de minha alma e o entretenimento de minha vida; embora tenha para mim que já não tenho nenhum, por culpa da malícia de maus e invejosos feiticeiros”.
Esses livros não eram Códigos, nem Ordenações, nem Forais. Eram, sem perder-se um só (e o Cura e o Barbeiro bem o viram), os livros dentro dos quais desvairou-se o juízo de Dom Quixote. Cervantes enfileiro diante do seu cavaleiro os mais fortes venenos doclimatério medieval: – Amadis e Florisel, Celidon e Oliverios, reptos e desafios de cristãos e mouros. Todo esse exército armado de filtros e encantamentos esteve às ordens do mais obstinado colecionador de derrotas. Depois que deixou de consulta-los, é que Dom Quixote se torna ele mesmo e vence os mais afamados paladinos. Nenhum deles se elevou, no tempo, até a altura do pequeno guerrilheiro manchêgo. E muitos menos depois, os autores mais célebres e afortunados da fábula novelesca produziram heróis que o eclipsassem. Nem Dickens, com o seu Pickiwick, nem Daudet, com o seu Tartarin, em nenhuma aventura de leões, arrancaram a auréola platônica, íamos dizer mística, daquele que surgiu na arena tão mal montado no velho Rocinante.
Nem no mar, nem na floresta, lhe apareceu um rival. Os personagens de Stevenson navegaram e piratearam, semeando pelas ilhas seu ódio à propriedade e à lei. Os marinheiros de Jack London, de Conrad e de Maughan, são sempre torvos e cruéis em sua coragem. Tarzan, o moderno campeão gritador imaginado por Bourroughs, tem a bondade quixotesca, mas só sabe viver no reino palpitante dos seres brutos. Tal é a força da poesia e da fé, que depois de mais de três séculos, Dom Quixote os vence a todos, e obriga seus companheiros de lenda, como fez com os mercadores toledanos, a reconhecerem e proclamarem a excelsa formosura de Dulcinéa, sem ver sequer seu retrato.
Cervantes nos adverte de que o seu cavaleiro discorre muito bem, embora sempre finalise mal. Engano do criador ao visionar a marcha histórica da criatura. Depois da última façanha o vencedor ergue no seu escudo a memória de revive-lo com os dois braços, o do realismo e o do idealismo, que abarcam as terras e os mares por onde se expandiu o gênio hispânico, na sua infinda batalha por Deus, pela justiça e pela glória.
3 – Os ideais da cavalaria andante
Temos de rever por um instante o mundo medieval em que se formou Quixote. Toda a consciência apaixonada de Justiça que Cervantes instilou no seu homem, veio daquele imenso estuário de beleza e miséria que, como bem distinguiu Berdiaeff, não foi treva, foi noite.
Entre o desenvolvimento racional e unificador da civilização grego-romana e os tempos modernos, ocorreram várias “idades-médias”. O período de dissolução das invasões; a fase onde, após o brilhante ensaio do império cristão de Carlos Magno, a nobreza se organiza e o poder público se desorganiza; o período em que o ideal novo se manifesta numa ossatura provisória: – feudalismo, papado, Santo Império. Época, afinal, em que os elementos dispersos do passado intervêm, para que a autoridade renasça e a Europa se constitua.
A característica de todas essas “idades” é o predomínio do sentimento sobre a razão. Inaugurava-se o reinado do homem sentimental. E Dom Quixote, em quem tantas vezes Cervantes se denuncia, é o paladino alucinado desse reino de perfeição cujas lindes são marcadas na história por outros dois exaltados magníficos: – Isabel, a Católica e Inácio de Loiola.
Quem se contagiava dessa espécie de mal sagrado, tinha que viajar. Magriço e mais onze companheiros foram à Inglaterra desagravar damas inglesas que patrícios delas tinham afrontado:
“Fortíssimos consócios: eu desejo
Há muito já de andar terras estranhas;
Por ver mais águas que as do Douro e Tejo
Várias gentes e leis, e várias manhas…”
A cavalaria tornou-se errante e não encontrou mais belo destino do que carregar suas armas e sair pelo mundo em busca de injustiças a reparar e de oprimidos a socorrer.
Submeter as armas e os brasões dos guerreiros aos mandamentos da justiça, foi a batalha de Dom Quixote, o motivo da sua peregrinação e a causa das suas desditas. O cavaleiro pobre e apenas ilustrado nas artes belicosas dos outros, trazia também no broquel uma inscrição, como a do cavaleiro de Pouchkine. “Lumem coeli Regina!” Era a Justiça.
Os ideais da cavalaria heróica, postos em prática por Dom Quixote, lhe mostravam um código que ele tentou aplicar ao mesmo tempo como juiz, legislador e executor.
Logo que se dispõe a sair em aventuras (I, cap. 2), declara que a justiça é o fim e a missão principal da cavalaria andante, e não o esquece nunca. Em todas as ocasiões que se lhe apresentam evoca seu direito de amparar os humildes, combater os soberbos, desfazer agravos e em suma, reparar injustiças. Tal propósito é nele tão sincero quanto irrefreiável, convencido de que não lhe faltam conhecimentos, pois “está enterado de la jurisprudência, sabiendo distinguir lãs classes de justicia sea hacer…” (II, cap. 18).
E assim, entre o dislate e a boa fé, desautorou o Direito costumeiro sem causar grandes prejuízos. Que o digam os donos das ovelhas, acometidas com lança, como se fossem exércitos; o taverneiro que viu degolados e vazios seus botijões de vinho, atacados como se fossem gigantes; os guardas dos galés e os remadores das barcas do Ebro… há juizes que fazem pior do que o Quixote e nem podem alegar, como excludente do crime, o fato de não entenderem o seu caráter, por haverem se embrenhado na leitura dos livros de cavalaria.
[Continua amanhã]