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A Justiça no reino de D. Quixote (2-2)

Professor universitário, magistrado, jornalista e escritor, considerado por seus pares um estilista, Edgar Barbosa (Ceará Mirim, 1909 – Natal, 1976) enriquece a literatura em língua portuguesa com uma seleta de ensaios que Navegos passa a publicar aqui em sua memória. Abre a série o ensaio que ele escreveu sobre um clássico cervantino, D. Quijote de la Mancha, extraído de uma de suas obras há muito esgotadas, que lhe proporcionou a concessão da Flama Olímpica da Universidade de Salamanca, láurea cobiçada por muitos, atribuída pelo reitor e humanista espanhol D. Miguel de Unamuno

*Edgar Barbosa

4 – O idealismo jurídico de Quixote

A justiça em Dom Quixote é sobretudo impaciente e contrasta com a Justiça vulgar, dos Códigos e Tribunais, que poderíamos chamar a justiça de Sancho. Cervantes penetra profundamente no sentimento de equidade da alma latina, que em face da afronta ao Direito não se esfria em delongas com o adversário, por mais forte que seja.

Há um domínio de princípios e de tecnicismo jurídicos no Quixote que provam a coerência e a lógica de quem os aplica. Se as sentenças são aparentemente absurdas, porque usurpam a jurisdição profissional, atropelam os prazos, exercem coação, cerceiam a defesa, sempre eram prolatadas em favor dos aflitos. Os fundamentos são os mesmos que informam o espírito espanhol em sua rebelião contra a justiça positiva. Para dar asas ao seu destino, Quixote infringe a doutrina, torce a hierarquia social, converte Dorotéia em princesa e crê nos casos mais desatinados que lhe contam. Para ele sempre tem razão o demandante que requer primeiro, ou então o demandado que se socorre do seu prejulgamento. E de tal modo essa generosidade na fraqueza comandava o ânimo do julgador, que Quixote aconselhou Sancho a prevenir-se contra ela em todos os momentos do governo. Que nunca se guiasse pelo pressuposto, (ley del encaje), que procurasse descobrir a verdade sem comover-se nem com as dádivas do rico nem com as lágrimas do pobre, nem tão pouco pelos afagos de ninguém. E ao mesmo tempo que achava áspera a missão da Justiça, tão sóbria que precisa renunciar ao agradecimento e à popularidade, prevenia a Sancho que o mais perigoso suborno para o juiz é a adulação, que não custa nada ao subornante e custa ao subornado o desconhecimento de sua própria valia.

Excelente conselheiro, Dom Quixote andou melhor no papel de advogado do que no exercício da magistratura. O direito de asilo, a extinção da punibilidade, a eficácia dos atos possessórios, ele os patrocinou com exatidão. Professa o Direito Público, quando condena o arrendamento da jurisdição e a justiça como origem de impuros proventos, entendendo que ela é bem inalienável do Estado. Não se deve estranhar que o mais cuidadoso cumprimento da técnica jurídica chegue ao capítulo final, e presida o testamento de Quixote, melhor redigido que se o fora por muitos escrivães, e com hábil observância dos preceitos universais para prevenir fontes de nulidade na cláusula restritiva do eventual matrimônio da sobrinha do cavaleiro.

5 – Sancho como bom juiz

Sancho nos deixou uma sólida e respeitável jurisprudência na ilha de Barataria. De onde lhe veio tanto bom senso, onde adquiriu tanta magnanimidade? As três esperanças de Sancho, durante a sua interesseira peregrinação com Dom Quixote, eram ascender na classe social, melhorar de fortuna e exercer autoridade. Seu amo lhe presenteou essas três coisas, ajudado pelos duques e por quantos tomaram parte no entremês da ilha. Sua carta de governador a Dom Quixote é uma plataforma de estadista tranqüilo. Aquela era a sua ilha, não ambicionava outra. Supersticioso da Justiça, proclamando a necessidade dela mesmo entre ladrões, durante o seu curto governo deu audiências com toda solenidade e inaugurou a justiça ambulante preconizada por seu amo.

Avultam na experiência de Sancho a desconfiança do julgador contra a má fé dos litigantes e o seu esforço por uma justiça rápida e eficaz. A astúcia do camponês serve ao juiz Sancho para investigar e completar a prova com diligências das mais chocantes, e no entanto, permitidas pelo arbítrio que se dá ao julgador de dirigir a perícia. Condena a passividade do magistrado, como figura decorativa, e estimula o poder “ex-offício” da Justiça e não deixa nunca de ter à mão os conselhos de Dom Quixote, no seu alto sentido de misericórdia, demonstrando sua piedade por ocasião da visita às prisões e ao decidir em favor da vida o processo da forca. Inspirado nas cartas do seu amo, baixa instruções para reprimir a ganância dos açambarcadores de gêneros alimentícios; abre os mercados à livre entrada dos produtos; licencia o vinho de todas as procedências, contanto que se declare o lugar de onde vem, para se lhe por o preço segundo sua estimação, bondade e fama; atribui gravíssimas penas aos veiculadores de folhetos lascivos; ordena que ninguém anuncie milagres sem trazer testemunho autêntico de que sejam verdadeiros; cria o comissariado dos pobres, não para que os persigam, mas para que os ouçam e protejam.

6 – Posição atual de Quixote

Do sublime ao ridículo não há mais que um passo. A frase de Bonaparte talvez não caiba em nenhuma passagem do Dom Quixote.

Livro com aparências de comédia e travos de ironia, logo deixa entrever uma doce tristeza, que jamais se exalta ao desespero. Não é uma tristeza hostil, de fundo de cárcere, por que tem a virtude de interessar a todas as idades e de chamá-las a confiar em uma ressurreição dos homens.

Vimos há bem pouco que Dom Quixote, vencido e maltratado, não se rende. Sua justiça é a da compaixão e do desprendimento, e portanto vive tão perto da dor e do mal que se aproxima daquela outra que se espalhou na terra pelo evangelho dos pescadores do lago.

Dom Quixote também foi pobre e Cervantes preferiu não nos dizer o nome do obscuro lugar da Mancha onde começou sua história. Deu-lhe cinqüenta anos de contemplação e uma vida de tão pouco dormir e de tanto ler que lhe tirou o juízo.

Não é sem intenção que Cervantes disso nos informa. Para exemplo do mundo; o gênio do artista fez arder o cérebro de Quixote, a fim de que ele teimasse no escândalo da generosidade. Fora preciso crer, pelos tempos dos tempos, que, com sisuda sensatez, não teria sido heróico, e sim ridículo. Liberto dos freios do juízo, Quixote voou ao encontro da Justiça, escolheu a dama de quem enamorar-se, como era de lei na cavalaria, pois seu braço tão pouco afeito às armas necessitava de alento místico às façanhas programadas. E assim lhe veio a imagem de Aldonza Lorenzo, a quem logo crismou de Dulcinéia, “moça rústica, de muito boa presença, por quem se apaixonou, ainda que, segundo se compreende, ela jamais o soube nem se deu conta disso”. (Unamuno, Vida de Quijote Sancho, pág. 20).

Ninguém viu Dulcinéia, não sabemos sequer se ela existiu, porque são incoerentes os delírios do seu cavaleiro e certamente inventadas as referências de Sancho, quando finge diálogos com a Senhora Del Toboso (Cap. XIV). Mas, para Dom Quixote, ela existiu, tal como a Justiça, desdenhando ou ignorando os sacrifícios dos seus servidores.

O fato não é raro, aqueles que são repelidos só acreditam nos que os rejeitam. Essa crença salva Dom Quixote de cair na paz da vulgaridade. Não terá sossego, nem o procura. Pelo contrário. Visto assim da névoa de trezentos e muitos anos, parece até mais agitado, mais desarrumado dentro da sua armadura, mais aguerrido para novas andanças. Todos os seus imitadores, que andaram pelas várias estradas do mundo antes que se desconfiasse de uma intervenção federal dos espaços, transigiram e assinaram tratados.

Quixote não transige e não assina. Continua batalhando e sangrando, pois jamais deixará no chão alguma luva nem sofrerá impassível qualquer agravo. E enquanto houver Espanha, ele nos chegará vivo em corpo e espírito.

 

 

Em destaque, Dom Quixote por Goya; em cima,estatua de D. Quixote e Sancho Pança comemorativa dos 400 anos de publicação da obra de Miguel de Cervantes.