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A Maçonaria na estrutura da Flauta Mágica

Frederico Toscano, especialista em Mozart, escreve sobre a Flauta Mágica, talvez a maior criação mozartiana – uma ópera cujo fascínio cresce desde sua estreia, acompanhado de mistérios e enigmas.
*Frederico Toscano

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A partir da fundação da Grande Loja da Inglaterra em 1717, a maçonaria se desenvolveu entre todas as camadas da sociedade europeia do século XVIII – exceto entre os camponeses e as classes mais baixas – como reação à intolerância religiosa predominante e ao absolutismo político. A utilização de rituais simbólicos, oriundos das guildas medievais, permitia que homens de diferentes origens sociais partilhassem experiências comuns e fortalecessem seus sentimentos sociáveis. As principais características da Confraria eram a sociabilidade e a caridade.

A loja maçônica “Zur wahren Eintracht” (Verdadeira Concórdia) foi fundada em Viena na época em que o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) lá se instalou, quando o imperador José II (1741-1790) acabara de pôr em execução seu programa de reformas no espírito do Iluminismo. O monarca encontrou forte apoio entre os maçons. Por muito tempo Mozart mantivera contato com membros da Confraria, sobretudo durante a sua residência em Viena e em suas visitas à Alemanha e à França. Assim, ele estava bem familiarizado com a diversidade da maçonaria vienense, quando decidiu ingressar em uma das lojas da cidade. Existe ampla documentação de seu envolvimento com a maçonaria, por meio de numerosos eventos e composições. A tonalidade e o ritmo são as principais características da linguagem maçônica de Mozart. O total de bemóis – não sustenidos – na tonalidade, por exemplo, corresponde ao grau maçônico

A canção O heiliges Band, KV 148/125h é considerada a primeira obra maçônica de Mozart, seguindo-se muitas outras, como a música – espantosamente avançada – para a peça Thamos, KV 345/336a, do maçom Tobias Philipp Gebler (1720-1786); o Andante do Quarteto de cordas em lá maior, KV 464, para a cerimônia de recepção do compositor ao Grau de Companheiro na loja “Zur wahren Eintracht” (citada acima); o Quarteto de cordas em dó maior, KV 465, que se refere à sua passagem ao Segundo Grau; o Concerto para piano em dó maior, KV 467, cujo Andante é atribuído ao seu ingresso ao Terceiro Grau; a cantata de Die Maurerfreude, KV 471, em homenagem a Ignaz Edler von Born (1742-1791), Venerável Mestre da referida loja; a Música Fúnebre Maçônica, KV 477/479a, tocada em homenagem a dois maçons recém-falecidos; a cantata Dir, Seele des Westalls, KV 429/468a; e a Eine kleine Freimaurerkantate, KV 623.

A Flauta Mágica é, claramente, uma alegoria maçônica, o que justifica o tom solene de boa parte de sua música, e está cheia de símbolos e personagens-chave, embora não apresente formalmente os rituais da Confraria. Pamina, por exemplo, representa a Áustria, dividida entre as trevas do totalitarismo da imperatriz Maria Teresa de Habsburgo-Lorena (1717-1780), a Rainha da Noite, e a luz do ideário maçom. Sarastro corresponde ao maçom Ignaz von Born, citado acima. Tamino é o herói esclarecido destinado a salvar Pamina das trevas para consagrá-la à luz: durante algum tempo, os maçons esperaram que o imperador José II, simpático à loja e por ela apoiado, cumprisse esse papel. Ao seu lado, como escudeiro, Tamino leva Papageno, a engraçada figura do vendedor de pássaros, que representa o homem comum, com as preocupações comuns de conforto material, de encontrar uma Pagagena bonita e carinhosa, um bom vinho e uma mesa farta.

O musicólogo norte-americano Howard Robbins Landon (1926-2009) fez um levantamento das citações de textos “iniciáticos”, recolhidos em obras como O Grande Mistério da Maçonaria Revelado (Londres, 1725) ou Mistérios dos Maçons (1784), de Ignaz von Born. Também analisa extensamente todos os elementos da simbologia maçônica existentes não só na Flauta como em outras obras instrumentais do fim da carreira de Mozart. O número três, por exemplo, domina toda a obra: há três Damas e três Meninos; é frequente o uso da tonalidade simbólica de mi bemol maior, que tem três bemóis na armadura de clave; na abertura, ouvem-se os três acordes que evocam as batidas rituais na porta com que o aspirante a maçom pedia a entrada na loja. O número dezoito – seis vezes três – do Grau Rosa-Cruz aparece sistematicamente.

Caso se passe a encarar com ceticismo toda essa simbologia numérica, alerta Robbins Landon, deve-se considerar que a introdução orquestral da cena com os Homens Armados, na porta do Templo, contém precisamente dezoito grupos de notas. Sarastro, o sumo-sacerdote, representando o Venerável Mestre da loja, aparece pela primeira vez na cena 18 do ato I. No ato II, quando Sarastro entra, há em cena – como o libreto de 1791 faz questão de especificar – dezoito sacerdotes e dezoito cadeiras; e a primeira parte do coro que eles cantam, “O Isis und Osiris”, tem dezoito compassos.

A dualidade de tom da história – a seriedade de seu conteúdo “iniciático” e o lado desenvolto, cheio de alegria de viver – já está sintetizada na extraordinária abertura, música rebuscada, cheia de efeitos técnicos que só um acurado exame da partitura revela, mas que efetua o milagre de soar perfeitamente natural e acessível a todos os ouvidos, de ser atraente para todas as faixas de público, para todas as idades. Comparada com As Bodas de Fígaro e Idomeneo, afirma Machado Coelho, a Flauta tem uma orquestração relativamente simples, mas extremamente adequada e eficaz: por exemplo, não há contrabaixos acompanhando os três Meninos para frisar o caráter leve, aéreo dessas personagens. O fato de o singspiel ter sido montado num teatro pequeno explica em parte essa simplicidade; mas ela se liga também – como o demonstra a partitura de A Clemência de Tito, austera embora concebida para uma faustosa solenidade cortesã – pelo fato de Mozart concentrar-se cada vez mais, nessa fase final de carreira, nos elementos essenciais da expressão dramática.

A forma de construir os finais ilustra também o profundo desenvolvimento pelo qual Mozart estava passando, e que teria feito a ópera trilhar caminhos inimagináveis, se a morte não o tivesse levado tão cedo.  A esse respeito Erik Smith afirma que uma nova liberdade surge no final do ato I. Para ele, na Flauta os finais não são mais uma série de cenas com número crescente de personagens e tensão crescente, mas a expressão livre das emoções que se esconde por trás das palavras. O dueto entre Pamina e Sarastro “Herr, ich zwar Verbrecherin” oferece outra possibilidade de retrato das emoções pela orquestra, que sugerem batidas do coração de diversas velocidades e intensidades – as de Pamina quando pensa em sua mãe; as de Sarastro quando reconhece que a moça não é para ele, como esperara, porque agora a melodia, nesta cena e, mais tarde, na seguinte, para uma interjeição do coro, é feita com absoluta liberdade.

No final do ato II, entre a cena em que os três Meninos impedem Pamina de se suicidar e a em que eles prestam o mesmo serviço a Papageno, está o coração da ópera, em que Tamino e Pamina se submetem às provas. Mozart abre-as com seis solenes compassos em dó menor, depois vem o antigo coral cantado pelos Homens Armados citado acima (“Der, welcher wandert diese Strasse voll Beschwerden”). Após um delicioso “allegretto”, no qual se constata que os Homens Armados no fundo estão preocupados em tranquilizar o casal dizendo-lhe que o final está próximo e tudo vai acabar bem, vem o final simples e exultante: “Tamino meu! Que felicidade! / Pamina minha! Que felicidade!”. Há um início hesitante, com as trompas sustentadas pelas cordas, antes que os amantes falem de novo (vídeo abaixo). Este é, para Erik Smith, o maior dentre os muitos momentos que fazem da Flauta Mágica a mais comovente das óperas de Mozart.

Robbins Landon registra que A Flauta Mágica foi o maior sucesso da vida de Mozart e que deveria ser o começo de uma nova era para o compositor, embora essa nova era fosse terminar pouco depois de nove semanas após sua estreia. No vídeo abaixo assistimos aos últimos compassos do maior gênio da música no mundo da ópera: a Rainha da Noite, que se juntou a Monostatos, tenta dar o golpe definitivo contra os sacerdotes, mas são vencidos no último momento e lançados à noite eterna; o coro, em seguida, entoa louvores a Ísis e Osíris, dando glória aos iniciados (Pamina e Tamino), exibindo a fraternidade que todo ser humano deve demonstrar com os seus e a celebração da coragem, da virtude, da sabedoria e do amor.

Abaixo, o final do primeiro ato.

(acréscimo do editor)