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A mais misteriosa das escritoras argentinas

Fundador de Navegos homenageia a memória de escritora argentina que foi sua amiga e registra um episódio pouco conhecido de sua biografia.

*Franklin Jorge

Disse Voltaire que todos os gêneros são bons, exceto o enfadonho. Assim, não fazia distinção entre a prosa e o verso, entre o lírico e o dramático, como a antecipar, em alguns séculos, o que me disse certa vez a argentina Luísa Mercedes Levinson (1914-1986), sem dúvida uma das grandes escritoras de sua geração e do nosso tempo.

Autora de uma obra pletórica que foge ao lugar-comum, praticou ela própria todos os gêneros, exceto o enfadonho. Em seus escritos tudo é surpresa e novidade, a começar pela forma como os escrevia, deitada em sua grande cama, cercada por seus oito gatos que a encantavam e divertiam. Colette, por sua vez, tinha 40 gatos em seu apartamento parisiense. Razão pela qual nunca se entediavam nem se aborreciam.

Seu último livro publicado em vida, El ultimo zelofonte, parece-me o singular divertissement de uma autora espirituosa e erudita. Pequena novela que me faz lembrar Sonho de uma noite verão, pois nem Shakespeare nem ela, nas obras a pouco citadas, não se enquadram em nenhum gênero, mas dão a medida do talento de quem os imaginou e escreveu. Versa sua ficção sobre um velho antropólogo, o único argentino a obter o Prêmio Nobel, por ter descoberto em algum país asiático o último exemplar de um animal mítico que sugere o unicórnio, o Zelofonte, que tem o dom de espalhar a paz . Chamam-no, a sua personagem, pelas costas, por pura galhofa, de “o velho dos ossos”, por sua longevidade e especialidade cientifica – a antropologia.

Li-o e o reli em uma única noite, como que hipnotizado por sua maneira de narrar de maneira fluente uma não-história. Voltei a rele-lo outras inúmeras vezes e ainda o guardo comigo, inclusive pelo autógrafo que a autora teve a bondade de escrever para quem ela costumava chamar de seu “amigo brasileiro”, ou Georgi, ou ainda Georgie, um dos poucos escritores dos quais gostava, dizia; preferia os artistas plásticos aos escritores, por serem menos solenes e mais boêmios. Ao lança-lo, teve o seu nome apoiado pela Sociedade de Homens de Letras de Paris, para o Prêmio Nobel de Literatura, mas ela morreu em consequência de uma queda, após receber a noticia de que seu nome fora formalmente apresentado para concorrer à cobiçada láurea.

Sempre me agrada  escrever sobre Lisa Mercedes, como nós, seus amigos, a chamávamos. Sinto como que uma espécie de felicidade à simples enunciação, falada ou escrita, de seu nome, por me fazer lembrar de sua obra personalíssima e pela lembrança que guardo de suas memórias misteriosas, algumas das quais transpostas para  seus livros sob a forma de crônica e novelas como da vez em que, passeando por uma praça de Buenos Ayres na companhia de uma amiga aproximou-se de um rapaz que, concentradamente, desenhava com um livro aberto sobre o banco em que trabalhava. Era um livro de Levinson que inspirava seus desenhos. Essas coisas lhe aconteciam com frequência, como fazer amizade com pessoas mortas.

Seu primeiro livro publicado, La casa de los Felipes, foi inteiramente sonhado. A cada noite ela sonhava um capitulo e pela manhã o transcrevia em estado de transe. Publicado livro, tempos depois um pesquisador a informou que a casa que ela descrevia de fato existira, na mesma rua e no mesmo número que ela lhe dera e que lá, de fato, morara uma família Felipe, coisa que ela ignorava inteiramente ao escrever seu livro de estreia.

Inventora de uma escrita que dir-se-ia hipnótica, críticos mais qualificados chamavam-na de “a Clarice Lispector da Argentina”. Certa vez ela me confessou que recebera de mim o presente mais surpreendente de toda a sua vida (ela diminuía a idade): um exemplar de Onde estivestes de noite?, de Clarice. Adquiri-o na Livraria da Rose,em Porto Velho, onde então morava. Procurei um alquimista, um velho que transformava ouro em pó e o espargi em cada página desse livro que acabara de ser lançado. Ela estava deitada na grande cama da única residência da avenida 11 de Setembro, em Belgrano, a poucos quarteirões da Casa Rosada, cercada por seus queridos felinos, quando abriu o pacote que eu enviara.” Caiu sobre mim uma chuva de ouro”, escreveu. E, durante dias, à noite, à meia-luz, seu quarto resplandecia com o brilho das partículas de ouro…