*Franklin Jorge
Um dos maiores vexames de que fui testemunha, ao tempo em que trabalhei na Sala Natal, decorreu da visita que nos fez a representante do Ministério da Cultura no Nordeste, sediado no Recife. Refiro-me à titular da Representação, que nos procurava para se inteirar das ações institucionais de órgãos como a Funcarte, a Secretaria Municipal de Cultura de Natal e a Fundação José Augusto, que se beneficiavam de verbas federais e a ela competia fiscalizar o seu uso. Mal sentou-se, a sra. Maria do Céu foi logo dizendo-nos: “Espero encontrar aqui boas noticias, ao contrário do que acabei de ouvir em visita à Fundação José Augusto. Um verdadeiro caos…”
Confesso minha surpresa ao ser convidado para essa reunião que expôs de corpo inteiro o secretário Dácio Galvão. Senti-me envergonhado de estar ali, ouvindo perguntas objetivas e respostas evasivas que desnudavam a más qualidade da gestão pública na área da Cultura. Talvez, em sua morbidez, desejasse o secretário ao convidar-me, mostrar-se brilhante e capaz, aos meus olhos, que ele bem sabia que eu o via sem nenhuma confiança quanto a sua competência em uma área que claudica há mais de 15 anos, sem produzir os esperados frutos. Que, segundo seu argumento esfarrapado que usou para botar o prefeito no bolso, viriam com a criação de uma secretaria especializada.
Certo é que Maria do Céu, que me surpreendeu por sua juventude, não se fez de rogada e pôs sobre a mesa, sem delongas, os interesses e motivações de sua visita à mais provinciana de nossas capitais, Natal, que dizem por aí com ar de deboche, “não há tal”. Especialmente no que concerne à cultura furada e emendada por tarefeiros mal instruídos, escolhidos sem critério e mantidos por benevolências ou mesmo descaso dos governantes. Mal sentou-se, ao meu lado e de frente para o titular da pasta, foi logo colocando Dácio Galvão contra a parede, ao pedir-lhe informações detalhadas sobre a ação da Funcarte e da Secretaria de Cultura em uma área considerada-chave – segundo ela, pelo Governo Temer, que constara em pouco tempo o descaso de seus antecessores em ações de presdervação da memória, em especial, de recuperação de documentos – ou seja, uma área necessária e imprescindível ao funcionamento de uma boa política cultural – a preservação do patrimônio cultural que, em tradução livre, significava dizer, como os documentos eram classificados, restaurados, guardados e cuidados. Escuso-me de ser redundante, mas a verdade nua e crua é que Dácio empalideceu ainda mais ao sentir-lhe faltar chão sob os pés. Como todo espertalhão, tentou a principio ludibriar a sra. Maria do Céu, como se acostumara a fazer ao prefeito. Tais perguntas, feitas diretamente e sem entraves, foi como uma bacia de água gelada sobre um maleitoso que não conseguiu tugir nem mugir, tamanho o inesperado da perguntas que lhe tiravam o folego e quaisquer restos de vergonhas que lhe sobrasse em sua cara lisa e mal lavada de tanto enganar e ludibriar o prefeito, sempre apto a acolher seus queixumes e explicações por mais disparatadas que fossem. o cara mostrou-se um artista, como dizem as más línguas, quando querem dimensionar tamanha esperteza.
Preservação? Como assim? Quis ainda ganhar tempo, descaradamente, o secretário de cultura. Mas Maria do Céu foi clara: “De documentos”. Pois – triturou-o a representante do MinC – não há política cultural nem instituições culturais que não dedique um pouco de seus esforços a preservar a memória, que é o que resta da cultura quando a mesma, de alguma forma, desaparece. Não me queira dizer, pois, que desconhece a questão e pode gerir a cultura de uma cidade como Natal, em especial de uma capital de Estado, deixando de lado assunto de tamanha relevância para o futuro da Culturas e das gerações.
É verdade que Dácio ainda não se desaminou e insistiu em engana-la, culpando o prefeito por seu descaso, mas a mentira, por demais evidente, não colou ou Maria do Céu não se deixou enganar com tão esfarrapada desculpa. Ora, se ela já saíra aterrada da Fundação José Augusto, fico a imaginar o que não pensou acerca da cultura do município. “Sei que aqui vocês fazem muityas festas…”, arrematou de maneira ferina.
Ainda tentei salvar o prefeito e o secretário, citando casos por demais conhecido por quem é do ramo, ocorridos aqui mesmo em Natal, como a destruição da Oficina de Gravura Rossini Quintas Perez, a perda de obras em pinturas, desenhos e gravuras, por armazenamento inadequado etc . Citei inclusive os casos do Ceará-Mirim e Assu, que não preservaram sua rica memória remanescente do Capitania, do Reino e do Império. Cheguei a esmiunçar o Caso do Assu, meu conhecido, que chegou a dispor de um acervo muito mais rico do que o do próprio Instituto Histórico e Geográfico – o acervo amealhado pelo historiador desde o fundador da Família Wanderley no Vale do Assu, Gonçalo e que se preservou por gerações pelas mãos de seus herdeiros, de Palmério Filho e de Francisco Amorim e outros de seus avós, que chegaram a ter quase udo sobre a história do RN, a começar pelo genocídio das tribos indígenas locais, quando por fim foram dizimadas impiedosamente pelo capitão do mato Domingos Jorge Velho que varejou o Vale do Assu, contratado pelo governo da Capitania para extermina-los impiedosamente; contei-lhes das centenas de sacos de pares de orelhas dos silvícolas que se amontoavam na Cadeia e Câmara da Vila da Princesa que serviam de contraprova de que o serviço fora feito e os índios de fato exterminados. Suas mortes eram contadas pelo numero de orelhas, que não apodreciam e levavam meses enfardadas, para serem conferidas por pessoa autorizada a fazer o devido pagamento por tais préstimos.
Contei-lhe, a Dona Maria do Céu, dos documentos de compra e venda de escravos e cartas de alforria, documentos velhíssimos oriundos do Governo Holandês no RN, além dos panfletos que costumavam, altas horas da madrugada, serem colocadas sob as portas das residências das grandes famílias locais, relatando quem traíra quem e com quem, quem era filho bastardo e quem perdera o cabaço antes do casamento, quem matara para adquirir riquezas, quem prevaricara ou continuava prevaricando, enfim, a vida secreta da cidade, um velho costume herdado da cultura ibéricas e que que em uma certa tarde a neta do historiador, alérgica a tanta história pretérita, tocou fogo e se livrou impunemente de parte da história do RN. Creio ter por esse modo aliviado a agonia de Dácio Galvão, coisa que ele me fica devendo por séculos e seculorum, que assim seja! Por fim, a diligente representante do MinC deu a reunião por encerrada, dizendo que não seria em Natal que encontraria algum argumento em favor da Gestão Pública em segmento tão estratégico. E assim se foi, de volta ao grão Pernambuco!