*Alexsandro Alves
Porque nunca teremos quaisquer respostas sobre a morte, a vida sobre este mundo será sempre uma frase inacabada.
O que mais me fascina nas religiões é a morte. A maneira como elas entendem a morte me faz apreciá-las mais ou apreciá-las menos.
Por isso sempre me afastei do cristianismo, sobretudo o protestante: eles têm aversão aos mortos. No entanto, em um dia de fevereiro de 1995, eu conheci a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os Mórmons. No dia 25 de junho daquele ano, fui batizado, tinha 20 anos.
Que batismo! O batismo é de corpo inteiro. Nos dirigimos a uma piscina ou tanque, chamado de pia batismal, essa pia está posicionada abaixo do solo – como um túmulo. Entramos e somos submergidos inteiramente, nem um fio de cabelo permanece sobre a água. Lentamente a água nos cobre como areia e alguns segundo depois, somos emergidos… somos mortos e vivos!
Nos 17 anos seguintes, com extrema fidelidade e com a ferocidade e a curiosidade que me são peculiares, aprendi a doutrina da igreja em todos os detalhes, nos principais livros.
Em 2012, me afastei e retornei em 2016, permanecendo até 2018.
O que me fez amar essa igreja? Não foi deus – que, por fim, não acredito.
Foi toda a doutrina que envolve os mortos.
Os santos dos últimos dias têm um cuidado imenso e um conjunto doutrinário fascinante que trata dos entes falecidos.
É tudo pelos mortos. E isso me fascinou ao ponto da compaixão. Voltar o coração dos filhos aos seus pais, na doutrina mórmon, fazer a obra pelos mortos.
Que obra?
Na igreja, há os templos. São edifícios especiais. São fechados para quem não é mórmon. E não são todos os santos dos últimos dias que adentram em seus átrios, há algumas especificações que o membro deve possuir para poder ter a sua recomendação para o templo.
Eu lembro do primeiro dia em que entrei no templo. Foi no Templo de Recife.
A morte é tão marcante dentro do templo, que deixamos inclusive nossos nomes de fora. Dentro do templo recebemos novos nomes. Esse novo nome que recebemos é o nome pelo qual somos conhecidos no Reino Celestial. Eu amei meu novo nome. É o nome do personagem bíblico que mais admiro, coincidentemente.
Após receber o meu novo nome, fui encaminhado à pia batismal no templo. Cercada por doze bois, representando as doze tribos de Israel, é nela que somos batizados por pessoas mortas.
O batismo pelos mortos foi a doutrina que mais me encheu daquele sentimento evangélico de encontrei a verdade! Fui batizado por dezenas e dezenas de homens falecidos. Homens que viveram a mais de 100 anos atrás! Alguns estrangeiros, reconheci pelos nomes que eram poloneses. Homens que nunca sequer havia ao menos sonhado com a existência deles, agora estavam ligados a mim pelo batismo. Através de mim, foram batizados. E assim, batizados, podiam finalmente sair da prisão e entrarem no Seio de Abraão.
O silêncio no templo é quase total. Dependendo da sala, é total.
Entrei em uma sala em que havia outras pessoas. Estávamos de branco. Com as mesmas roupas brancas templárias. Caminhávamos em silêncio. Devagar e em silêncio. Me sentei. Ao meu redor, vivos que naquele momento sim, estavam mortos. Inclusive eu. O mistério da morte sussurrado nos silêncios. Já não tínhamos sequer nossos nomes sociais. Estávamos afastados do mundo. Retirados. E com novos nomes. E havíamos feito, todos ali, batismos pelos mortos.
***
Anton Bruckner (1824-1896), compositor austríaco, mantinha sobre seu piano a foto de sua mãe morta. Tocava piano assim, contemplando o último instante de sua mãe.
Até o século XIX, eram bastante comuns os álbuns dos mortos, que mostravam fotografias de pessoas tiradas um pouco antes de seu sepultamento. Esses mortos podiam estar na cama, na sala de estar ou em qualquer outro lugar, como se estivessem vivos.
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Mas eu nunca compreendi as razões pelas quais o ocidente desenvolveu aversão pela morte e pelos mortos.
Há um povo da Indonésia, os toraja, que mantém viva uma tradição maravilhosa.
É o manene. No mês de agosto, os toraja desenterram seus cadáveres. Cada família desenterra seu ente falecido, limpa a sepultura e troca a roupa do morto.
Algumas famílias permanecem com o cadáver em casa, preservado com formol, e conversam com eles. Segundo os toraja, os mortos só podem descansar em paz se retornarem anualmente para o convívio dos vivos. Por conta dessa tradição, esse povo desenvolveu um medo de viagens longas. Caso morressem longe de casa ficaria difícil o retorno como cadáver para o ritual.
Na manhã desse dia ritualístico, as sepulturas são limpas. Retiram-se os cadáveres, que são limpos e vestidos com novas roupas. Os parentes conversam e tiram fotos com eles.
É um respeito e uma ligação com os mortos que o ocidente não conhece.
Há famílias que permanecem com o cadáver em casa por anos, preservado em formol.
Essa familiaridade com os mortos me fez imaginar alguns possíveis diálogos familiares, antes da morte do ente querido:
No manene, me vista com aquele vestido branco que eu e você tanto gostávamos!
Quando me retirar da sepultura para o manene, fale baixinho aquelas palavras que você sempre diz quando…