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A mentira e o mentiroso

Procurador Federal Regional aposentado, Professor de Direito da UFRN, Colaborador de Navegos aborda um tema recorrente na política brasileira: a mentira que esconde verdades inomináveis.

*Edilson Alves de França

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A história do direito sempre registrou certa cautela doutrinária, voltada para a distinção entre o autêntico mentiroso e aquele que mente apenas de forma eventual, ocasionalmente. O brocardo jurídico “Aliud est mentiri aliud dicere mendacium“, bem retrata essa inquietação romana ao expressar que: “uma coisa é mentir, outra é dizer mentiras”. Outros povos da antiguidade também distinguiam o mentiroso, o trapaceiro, falso e inautêntico (capaz de agir com a intenção de enganar), daqueles que, inquiridos, mostravam-se nervosos e respondiam com evasivas, após longas pausas, movimentações corporais e indefinições quanto à posição das mãos.

Mais de dois milênios depois dessa distinção histórica, Altair Aranha1, no seu esclarecedor “Dicionário Brasileiro de Insultos“, assinala, com induvidosa propriedade, que o conceito de mentiroso deve ser reservado para “o indivíduo que, de forma constante, falta à verdade. Não se aplica à pessoa que mente por necessidade. Só é mentiroso o sujeito que, de forma frequente e compulsiva, oculta ou distorce os fatos…” Essa definição, como se pode observar, socorre o personagem de Joaquim Manoel de Macedo, em o Moço loiro que, mesmo após arrancar a mentirosa cabeleira, desmereceu a pecha de mentiroso.

A propósito, também com razão, Margaret Tatcher2 afastou dessa adjetivação os sutis ou subterfugientes, recomendando, com certa tolerância, que “Nunca minta deliberadamente. Todavia, às vezes, convém ser evasivo”. Mais indulgente, Aristóteles Onassis2 chegou a assegurar que: “não ser descoberto em uma mentira é o mesmo que dizer a verdade.”  Esse, talvez, seja o único momento no qual os corruptos falam sob a réstia da verdade: quando não são desmascarados pela mentira. Mesmo assim, sendo apanhados, ainda apelam para os mais compreensivos que, inclusive, admitem o desmembramento da mentira em: física (encenada pelo pedinte, falso aleijão); inocente (quando não causa dano); piedosa (aquela que conforta) e a irônica ou carioca, assim denominada por envolver jocosidade.

O fato é que, com apoio na mentira, muito se tem roubado, prevaricado, subtraído, assassinado e violentado por esse mundo afora. O caso dos irmãos Naves; o episódio da Escola de Base e o sepultamento indevido de valiosas investigações policiais, embora em tempo e modo distintos, estão aí a demonstrar as desgraças e prejuízos que as mentiras podem causar, inclusive no âmbito judicial. Evidente, portanto, que a mentira comporta um tratamento processual mais rigoroso, ainda que, eventualmente, se atente para sua avaliação sob as óticas da involuntariedade e da piedade. Sem que isso, convenhamos, signifique qualquer forma de tolerância ou apoio à sua relação incestuosa com a corrupção.

Com efeito, em que pese o desafio que a matéria desperta, é de se reconhecer que a discussão em torno da mentira, de certa forma, ultrapassa o objeto deste modesto trabalho. São polêmicas e várias as questões a serem agitadas: será que tudo que Platão disse, tentando compreender esse desvio comportamental, deve ser desconsiderado? A ironia de Anatole France desmereceria apoio, ao ponto de se negar seriedade à sua afirmação, posta no sentido de que as mulheres e os médicos bem sabem o quanto a mentira é necessária e benfazeja. Ou, ainda, seu objetivo não seria o de simplesmente, encantar, deliciar ou dar prazer, como assegurou Oscar Wilde, premonitório ao reconhecer que a mentira se constituiria base da sociedade civilizada.

Ao que concluo, o autor do Retrato de Doria Gray estava certo e errado ao mesmo tempo. Errado, porquê as mentiras, nem sempre, são deliciosas e encantadoras como sugere. Com apoio na mentira, conforme salientado na apresentação, nações inteiras sucumbiram diante de farsas e imposturas políticas, raciais, morais, econômicas ou religiosas. Por outro lado, Oscar Wilde parece ter razão quando asseverava que a mentira se constituiria a base da sociedade. Hoje, se não compreende a base, no mínimo, encontra-se encrustada no alicerce de uma sociedade predominantemente mentirosa, gerada com o sêmen da ambição, da indiferença e da corrupção, em seus variados sentidos.

Pelo que vemos aqui, nessa terra da Bruzundanga (tal como exposta por Lima Barreto), de forma “necessária” ou pecaminosa, a mentira tomou conta, institucionalizou-se. É o funcionário que “enterra” a sogra para matar o serviço, é o jornalista comprometido que deforma a notícia, o profissional do direito que emula, procrastina ou usa a profissão para se associar à corrupção, mente o viagrado fanfarrão no café da esquina, os políticos, os falsos religiosos, o contribuinte que sonega e o Estado quando não aplica os recursos como e onde deveria.

A lista é interminável. Mentem os direitos e garantias fundamentais, inclusive no âmbito da educação, da saúde e da segurança, diante da Constituição; metem as leis; as decisões judiciais encomendadas ou recompensatórias; mente o caixa dois; a publicidade enganosa; mentem todos, impunimente. Aqui, ao contrário do provérbio popular, a mentira tem pernas longas e lépidas. Churchill errou ao generalizar, assegurando que “os homens tropeçam sobre a verdade, mas a maioria levanta e sai correndo, como se nada houvesse acontecido“. Aqui, no Brasil, convenhamos, os corruptos e mentirosos, sequer precisam correr: basta dar tempo ao tempo e esperar pelo julgamento daqueles embargos ou, no máximo, pela próxima eleição. O povo, como eles bem sabem, além de crédulo, tem memória curta.

1- ARANHA, Altair. Dicionário de Insultos. Ateliê Editorial. 1ª ed. SP. 2002. P. 232

2 – CASTRO. Ruy. O Melhor do Mau Humor. Sel, Trad. e org. Cia das Letras-SP. 22ª reimpressão, p. 84.