*Francisco Alexsandro Soares Alves
Um Amor de Swann, segundo parte de No Caminho de Swann, primeiro romance do ciclo Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, contém análises magistrais sobre música e pintura. O capítulo centra-se em duas mulheres, a senhora Verdurin e Odette de Crécy. O narrador, nesse ponto do romance-rio, investiga os hábitos e os amores de Charles, da família Swann, clã que fascina o narrador, assim como, porem de maneira ainda mais arrebatada, o fascina os Guermantes.
Charles Swann é um rico judeu frequentador dos salões mais disputados de Paris e de Londres e membro do seleto Jockey Club parisiense, clube da elite judaica que organizara o maior escândalo do teatro oitocentista, aquele contra Wagner na estreia de seu Tannhäuser na capital francesa. O fracasso dessa ópera wagneriana foi comemorado por Meyerbeer, músico judeu influente nos círculos culturais de Paris e lamentado por Baudelaire e outros artistas dessa estirpe.
Swann frequenta também o salão da senhora Verdurin. Madame Verdurin é uma mulher com grande apreço pelas artes, porém, como nova rica, é afetada e, por vezes, superficial. Seu amor pela música wagneriana por vezes beira o histriônico. E é nesse salão que Swann conhece Odette de Crécy, com quem manterá um romance conturbado.
Através dessas duas mulheres, Proust evoca suas considerações sobre música e pintura. O salão dos Verdurin, dominado pela música alemã, Wagner e Beethoven sobretudo, é um retrato das fogueiras de vaidades e superficialidades presentes em qualquer meio social. Aqui, as aparências são sobrepostas à essência e o chique e o requintado por vezes assumem faces perversas. Essa perversidade, que é do gênero humano, não se expressa em atos escancaradamente ruins ou maus. Ele está nos detalhes. É no sorriso meio sem querer sorrir de alguns personagens, é no ato de não convidar um amigo para um passeio, a maldade está nos pequenos atos secretos e imperceptíveis, muitas vezes disfarçados pelo ambiente e pela festa. Mas é nesse ambiente de frivolidades mascaradas pela música e pela pintura, que surgem temas profundamente filosóficos. E Proust abre suas considerações de filosofia através da metafísica da música de Schopenhauer.
Essa parte é dominada pelas visões schopenhaurianas dessa arte. Muitas vezes Proust usa praticamente as mesmas descrições que o filósofo alemão usa em sua opus magna O Mundo como Vontade e Representação. Porque tanto Schopenhauer quanto Proust humanizam a música e mais ainda, humanizam a estética musical e a crítica em torno dessa arte. Explico.
Uma análise de uma partitura musical, tradicionalmente, tem a ver com a verificação de sua tonalidade, das relações entre os acordes, nas mudanças tonais: as modulações, com as dinâmicas, ritmos etc. com o que se costuma reunir numa expressão: a teoria musical.
Quando lemos O Mundo como Vontade e Representação, as análises musicais de Schopenhauer raramente tocam na teoria. Ele busca entender a música a partir de comparações com sentimentos e estados de espírito específicos. E é assim que Proust organiza suas considerações da arte de Euterpe.
A metafísica da música de Schopenhauer dominou o pensamento burguês oitocentista e encontrou terreno fértil na Paris de fim de século. Ora, Paris sempre foi uma cidade literária! Essa filosofia foi uma benção aos cérebros parisienses, que segundo alguns musicólogos, sempre procurou domar a música pela palavra.
Vejam esse excerto do texto de Proust, de sabor docemente schopenhauriano. Swann está fascinado com uma frase melódica de uma sonata (a tradução e a página serão sempre da edição da Nova Fronteira, com tradução de Fernando Py): “E ela era tão particular, tinha um charme tão individual e que nenhuma outra poderia substituir, que aquilo foi para Swann como se houvesse encontrado num salão amigo uma pessoa que admirava na rua e desesperava de encontrar de novo. Por fim, a frase se afastou, indicadora, cuidadosa, por entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso” (página 184). Esta frase musical, do Andante da Sonata para Piano e Violino, de Vinteuil, também personagem de Proust, marcará a obsessão de Swann em torno de Odette de Crécy. Será o leitmotif dessa paixão.
Outro momento bastante schopenhauriano:“Ele começava com os trêmulos dos sustenidos no violino, que durante alguns compassos era só o que se ouvia (…) mas Swann julgava distinguir ali agora um tom de desencanto. O trecho musical parecia conhecer aquela felicidade, cujo caminho mostrava, era vã. Em sua graça leve, possuía algo de completo, como o desinteresse que se sucede à mágoa” (página 189).
