*Franklin Jorge
Sabe-se que Shakespeare teve dificuldade ao lidar com Falstaff, Sir John Falstaff – ou, ainda Jack, ou, ‘’o velho gordo’’ –, criação que fugiu ao controle do autor e dominou o drama que lhe deu identidade civil, Henrique IV, como companheiro de baladas do príncipe herdeiro da Inglaterra, com quem bebia em Eastcheap, na Taverna Cabeça de Javali. O jovem Henrique, Príncipe de Gales, depois rei, compartilha com Falstaff e sua trupe de arruaceiros encachaçados a sordidez do submundo de Londres e arredores, assaltando, espancando, constrangendo, endossando o crime, sempre sujeito às notícias mais cruas e inoportunas.
Falstaff atravessa todo o drama – um dos textos mais longos escritos por Shakespeare, cuja encenação durou cinco hora, terá sido escrita entre 1598-1599, ou mais provavelmente depois de As alegres comadres de Windsor, de 1600-1601, segundo alguns exegetas. – Torna-se a personagem, por seus carismas, um importante eixo da ação; e, por sua autenticidade, um fenômeno que adquire vida própria, proclamando-se livre da tutela do autor; assumindo o comando, passando a surpreender-nos a cada momento de seu desempenho, pois tem a alma poética. Vilipendia, pois, a própria paciência do príncipe que, sentindo-se importunado por sua vivacidade, manda o monte de banhas e entusiasmo arredondar o discurso, naquela famosa Cena II, no Palácio real, num quarto dos aposentos do príncipe herdeiro, chamado, por Falstaff, de “rapaz”, de “Hal”… etc. Na intimidade que os acumplicia, trata o futuro Henrique V, seu camarada, como o mais onipotente dos velhacos e pede-lhe que, “quando rei fores não enforqueis nenhum ladrão”. Dá, porém, suas razões ao justificar o pedido. ‘’Nada sabemos do dia seguinte’’. Melhor botar carta de seguro. Por isso, por seu senso prático e previdência, já foi até comparado a Sancho Panza, o fiel escudeiro criado pelo gênio cervantino.
Falstaff é, em pessoa, apesar de seu caráter duvidoso, o bom senso folgazão. Frequentador do palácio e da taberna, atento a tudo e de tudo sabendo, ouve a sabedoria gritando pelas ruas. Mas ao futuro rei que quer apenas se divertir, apenas uma coisa interessa, encher a bolsa vazia com o fruto de roubos e assaltos: “Onde roubaremos uma bolsa amanhã, Jack?” Esta, a preocupação que os une em boa camaradagem. Sir John Falstaff, ou Jack, ou ainda e sobretudo Falstaff, costuma justificar a atividade secreta do bando como resultante do exercício pleno da vocação para o roubo, antecipando, por assim dizer, os políticos do nosso tempo. ‘’Que queres, Hal? É a vocação que manda. Não se pode censurar ninguém por trabalhar de acordo com a sua vocação.’’
Tendo surgido no ciclo dos dramas históricos, através do qual quis Shakespeare difundir e glorificar a crônica dos reis ingleses, Falstaff só vai morrer na peça seguinte, Henrique V [Ato II, Cena III], mas o autor e obrigado a ressuscita-lo, para satisfazer a vontade da Rainha Elizabeth, numa das suas mais célebres comédias, As Alegres Comadres de Windsor, de assunto burguês, na qual essas senhoras, cruas como o realismo, acolhem Falstaff, que tem uma morte soberba invisível aos olhos dos espectadores, encerrando a dificuldade do autor.. Um momento culminante da arte dramática de Shakespeare, que prefigura uma infinita biblioteca das paixões humanas, genialmente transpostas para o teatro.
Sua morte, narrada pela Estalajadeira sem nome, é uma apoteose que se registra após depois a ascensão do Príncipe de Gales ao trono da Inglaterra sob o nome de Henrique V. Na comedia, na qual reaparece para satisfazer a vontade da Rainha Elizabeth I, Falstaff está cada vez mais gordo e estufado como a múmia de uma montanha, continua vivendo ainda muito acima de suas posses. Continua crivado de dividas, bebendo todas, vencendo os tempos difíceis, querendo apenas viver bem, armando sortidas para se divertir e não para amealhar fortuna, embora sabendo por intuição que tudo afinal acaba em água de barrela.
Que do céu chova batatas – proclama Falstaff, sentindo já o bafio da morte. Ele geme do fundo do leito, embora não sejamos testemunhas de sua morte que é um tour de force shakespeariano. A vida é um sopro breve. Shakespeare vai finalmente se livrar duma personagem incomoda, velha e gorda, que fez rir o público de três diferentes peças.
O herói em sua última decadência consegue tornar a morte cômica. Ainda sente cada milímetro de seus músculos e ossos, após a surra praticada pelas lavadeiras que o confundiram com a roupa suja do cesto. Surra bem aplicada, Falstaff só não faz morrer debaixo de cacetadas, moído a pauladas sem dó nem piedade, pelas dispostas lavadeiras de Windsor, para não desagradar a rainha que se divertia com a s suas peripécias.
Falstaff está agonizando, não na querida Taberna da Cabeça de Javali, em Eastcheap, nos arredores de Londres, mas em Windsor, onde vive agora depois que o príncipe – seu companheiro de esbórnia – tornou-se o rei da Inglaterra e, no desempenho de suas responsabilidades, já não faz mais tanta conta de sua companhia.
Shakespeare já o homenageara, fazendo-o herói cômico da peça. Seu nome encima a lista das personagens de As Alegres Comadres de Windsor, apesar das extraordinárias senhoras Page e Ford, duas grandes criações de Shakespeare. Ao morrer em Henrique V, domina a cena de Henrique VI, ao fazer-se em seu leito de morte, maior que o seu infortúnio, ao delirar, numa cena tocante que desvela toda a fragilidade humana. Mesmo morrendo e condenado à que a todos espera, não perde a verve nem sacrifica o espírito folgazão.
Vale reproduzir aqui esse desfecho, comparado por alguns estudiosos ao que a história guardou e preservou da beleza resultante da morte de Sócrates, narrada por Platão:
Londres. Diante da Taberna de Eastcheap. Entram Pistola, a estalajadeira, Nym, Bardolfo e o pajem.
ESTALAJADEIRA – Deixa, meu doce maridinho, que eu te acompanhe até
Staines.
PISTOLA – Não, que o meu peito forte se afligira. Bardolfo, sê jovial; desperta a veia, Nym, da fanfarronada, que Falstaff já não vive. É preciso que o choremos.
BARDOLFO – Quisera estar com ele onde quer que se encontre: no céu ou no inferno.
ESTALAJADEIRA – Não, é certeza não estar no inferno; está no seio de Arthur, se é que alguém já foi para o seio de Arthur. Teve um fim muito bonito. E se partiu como uma criança na pia batismal, entre as doze e uma hora, precisamente, na volta da maré. Quando o vi amarrotando o lençol, brincando com flores e rindo para a ponta dos dedos, compreendi que só havia um caminho. Estava com o nariz afilado como uma pena e delirava com campos verdes. ‘’Então, Sir John’’, lhe disse, ‘’que é isso, homem? É preciso ter coragem!’’ Ao que ele se pôs a gritar: ‘’Deus! Deus! Deus!’’, três ou quatro vezes. Para consola-lo, disse que não pensasse em Deus, por ser de opinião que não valia a pena perturbar-se com pensamentos dessa natureza. Nesse momento ele pediu que lhe pusesse mais roupa sobre os pés; enfiei a mão por baixo do lençol e os apalpei, percebendo que estavam frios que nem uma pedra. Então apalpei-lhe os joelhos, e mais acima, e mais acima, e tudo estava tão frio que nem pedra…
NYM – Dizem que ele gritou, pedindo xerez.
ESTALAJADEIRA – É certo. Pediu mesmo.
BARDOLFO – E por mulheres, também.
ESTALAJADEIRA – Não, isso não é verdade.
AJEM – Gritou, sim, dizendo que elas eram diabos encarnados.
ESTALAJADEIRA – Tudo o que dizia respeito à carne não era com ele; não suportava a cor vermelha.
PAJEM – Certa vez ele disse que o demônio ainda haveria de leva-lo, só por causa das mulheres…
ESTALAJADEIRA – Sim, às vezes acontecia falar mal das mulheres; mas isso era quando estava reumático e falava da prostituta de Babilônia.
PAJEM – Estais lembrados da vez em que ele viu um mosquito pousado no nariz de Bardolfo e o comparou a uma alma negra a arder no fogo do inferno?
BARDOLFO – Já se foi o combustível que alimentava êsse fogo. Foi essa a riqueza que eu ganhei em seu serviço…
Henrique VI. William Shakespeare, 1564-1616.
Ato II – Cena III
ILUSTRAÇÃO Falstaff, ilustrações de John Gilbert ,1817-1897.