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A mulher no espelho do livro

Dirce Waltrick do Amarante é ensaísta, escritora e tradutora. Professora do Curso de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Traduziu, entre outros, Edward Lear, Eugène Ionesco, James Joyce, Gertrude Stein e Leonora Carrington.  Autora, entre outros livros, de Para ler Finnegans Wake de James Joyce, Cenas do teatro moderno e contemporâneo e As antenas do caracol: notas sobre a literatura infantojuvenil; e dos livros de contos Ascensão: contos dramáticos e Cem encontros ilustrados. Todos pela editora Iluminuras

*Franklin Jorge

O que a levou a escrever?

A leitura me levou a escrever. Gosto de ler e escrever sobre o que eu li, é uma forma de dialogar com o/a autor/a e de me aproximar dele/a.  Escrevo sobre determinado livro em forma de resenha. Se admiro o/a autor/a e o livro, escrevo sobre um possível encontro ou entrevista com ele/a, em forma de ficção.

À medida que leio vou selecionando trechos, fazendo relação entre o que o/a autor/a disse e o que já li em outro lugar. Depois escrevo sobre essas relações também.

Ultimamente, vejo a caótica situação política, econômica e social brasileira em muitos livros de ficção, e tenho escrito sobre isso. Alguns textos já foram publicados, outros estão engavetados. Nosso atual presidente, aliás, poderia ser comparado a protagonistas terríveis, como o enlouquecido Macbeth ou o Dr. Jekyll/Mr. Hyde, já que o chefe da nação parece ter um transtorno de personalidade. A propósito, no livro de Robert Louis Stevenson o lado mau acaba dominando e apagando de vez o lado bom do sujeito. No Brasil, faz tempo que o presidente assumiu a personalidade de Mr. Hyde e não vai sair mais dela, como acontece com a personagem do citado livro. Enfim, escrever é também uma mania, ou uma tentativa de ser ouvida, mesmo que seja por mim mesma.

Como descreveria o ato de escrever?

Não sei descrever, escrevo de uma assentada, é quase uma possessão. Tenho uma ideia, que surge em momentos inusitados, e, se posso, eu sento diante do computador; se estou longe dele, anoto em um bloquinho que carrego sempre comigo.

Depois dessa escrita espontânea, vem a parte mais cansativa e também a mais importante: burilar a escrita. Isso leva tempo, o texto se desconstrói, ele praticamente se desfaz na minha frente, mas de repente ressurge mais nítido e potente. Ou assim penso que ele ressurge…

Por que sua predileção por autores que fogem ao costumeiro?

Gosto do mundo do outro lado do espelho ou do fundo do buraco, como descreve Lewis Carroll em seus livros. Gosto do desconhecido, daquilo que me tira da posição de conforto. Adoro paradoxos e antíteses, é como estar em um labirinto perdida, nele todas as direções são possíveis. Achar a saída não é tão importante quanto a experiência de estar perdida e caminhar pelo labirinto, aqui faço uma alusão a uma ideia de Walter Benjamin… De modo que nada é original.

Crê que a literatura está fadada ao desaparecimento?

Não, acho que nunca esteve. A literatura está sempre viva, porque em todas as épocas tem quem se dedique à arte de ressignificar o mundo através dela, seja de forma escrita ou oral. E temos leitores. A literatura (a arte de um modo geral) está em alta neste período de pandemia: as pessoas estão lendo poemas, contos, colocando capas de livros nas mídias sociais, listas de livros para serem lidos durante o isolamento social, ou escrevendo textos sobre narrativas que discorreram sobre pestes.

Como surgiu o Bloomsday, festa em homenagem a James Joyce?

Todo dia 16 de junho festeja-se o Bloomsday, ou o Dia de Bloom, Leopold Bloom, o protagonista do romance Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, publicado em 1922.

O primeiro Bloomsday aconteceu no dia 16 de junho de 1924. Nesse dia, Joyce se recuperava de uma quinta cirurgia na vista, em Paris, quando, lembra seu mais importante biógrafo, Richard Ellmann, “a melancolia da clínica foi aliviada pela chegada de um ramo de hortênsias, brancas e de um azul pálido (as cores da bandeira da Grécia numa alusão ao Ulisses greco-irlandês de Joyce), que alguns amigos tinham mandado em honra do ‘Dia de Bloom’”. Joyce anotou em seu caderno: “Hoje, 16 de junho de 1924. Vinte anos depois será que alguém vai se lembrar desta data?”.

No Brasil, o Bloomsday vem sendo festejado há pelo menos três décadas. Em São Paulo, onde o evento já é tradicional, o Dia de Bloom ocorreu pela primeira vez em 1988 e foi organizado pelo poeta Haroldo de Campos e pela professora Munira Mutran, da Universidade de São Paulo. Outras cidades do Brasil passaram a comemorar a data a partir de então, sempre em 16 de junho ou em dias próximos. Em Florianópolis, o primeiro Bloomsday foi festejado em 2002, e desde então é organizado por mim, por Sérgio Medeiros e por Clélia Mello, que se uniu a nós em 2011.

Como contextuaria autores como Edward Lear, contemporâneo de Wilde?

Edward Lear e Lewis Carroll são considerados os pais do nonsense vitoriano. Lear aos poucos vem sendo conhecido no Brasil. Sua importância no âmbito da literatura é imensa, e seu legado nonsense, que abrange textos e ilustrações, exerceu expressiva influência na obra de outros/as escritores/as e artistas.

No século XX, influenciou, por exemplo, no âmbito da língua inglesa, escritores como o norte-americano Donald Barthelme e os ingleses W. H. Auden e D. H. Lawrence. Sua obra inspirou James Joyce, sobretudo na composição de Finnegans Wake. Na música, sua poesia foi musicada pelo compositor russo Igor Stravinsky. Quanto a seus desenhos, influenciaram importantes artistas gráficos, como, entre outros, os norte-americanos Edward Gorey e James Thurber.

Para alguns/algumas estudiosos/as, o artista inglês teria sido o primeiro “absurdista” de um movimento cultural nascido na Europa e que englobaria escritores tão diferentes como Flaubert, Jarry, Kafka, Ionesco, Beckett, Pinter, além de diversos pintores modernos. Pode-se acrescentar a essa lista também autores latino-americanos, como Sousândrade, Qorpo-Santo, Macedonio Fernández, Wilson Bueno…

No Brasil, existem apenas quatro coletâneas do escritor atualmente disponíveis no mercado: Sem Cabeça nem Pé, na tradução de José Paulo Paes e ilustração de Luiz Maia, e Adeus, Ponta do meu Nariz!, na tradução de Marcos Maffei com as ilustrações originais de Lear. Ambas têm em comum o fato de trazerem para o leitor apenas os limeriques (poemas curtos de quatro ou cinco versos, conforme disposição gráfica) do artista inglês, deixando de lado outros poemas dele e a sua prosa. Os limeriques foram os primeiros poemas escritos por Lear e constituem, sem dúvida, uma parte bastante expressiva da sua variada obra literária, a qual abrange, além desses poemas curtos, histórias em prosa e verso, canções, abecedários nonsense, botânica nonsense, dentre outros escritos igualmente importantes do ponto de vista literário.

Eu organizei e traduzi duas antologias de textos em prosa e verso de Lear: em 2011, Viagem numa peneira, e, em 2016, Conversando com varejeiras azuis, ambas pela Iluminuras. Pretendo publicar em breve mais uma. A obra de Lear é relativamente extensa.

Quais os autores catarinenses que destacaria?

Vou destacar dois mestres: Péricles Prade, com uma escrita que dialoga com o absurdo, o surreal e o nonsense; e o contista João Paulo Silveira de Souza, com seus escritos metafísicos.

Como vê a influência da internet na escrita contemporânea? Ela ajuda ou prejudica?

Eu gosto da internet, muitos/as escritores/as têm colocado seus trabalhos nas mídias sociais à medida que vão escrevendo seus textos. Às vezes, publicam uma primeira versão, o/a leitor/a tem, então, a possibilidade de acompanhar os avatares da escritura, seu work in progress ou work in regress. É quase uma oficina literária. Acho que tudo ajuda: “Always look on the bright side of life”, diz o versinho do filme A vida de Brian, dos Monty Python.