*Alexsandro Alves
I.
Uma das grandes qualidades da literatura machadiana é a sua proverbial ironia. Machado ironiza hábitos sociais, políticos e culturais de seu tempo em muitos de seus personagens. Podemos mesmo afirmar que os grandes personagens dos romances do Bruxo do Cosme Velho são marcados pela ironia ou pela melancolia, os pelas duas.
São personagens que nos enchem de tristeza profunda e, em seus últimos romances, de intensa filosofia existencial.
Também seus contos contêm essas características.
O melhor Machado é quando ele sorri. Diferente da maioria dos romancistas brasileiros de sua época, que ora enveredavam por uma construção da identidade nacional, como José de Alencar, ou por uma crítica mais feroz aos costumes, de certa forma desmascarando-os, como Adolfo Caminha, Machado escolhe uma ironia aguda, porém de certa forma ainda polida – polida por um texto magnânimo – diferente, também, de Lima Barreto, que escancara em seus personagens certas perversidades das gentes de seu tempo, mas que reivindicam lugar na alma brasileira até hoje. Onde Machado é discreto, Lima Barreto retira os véus.
Essa discrição machadiana, no entanto, não pode ser confundida com um ecoar, mesmo que timidamente, de suscetibilidades das vontades contemporâneas. Machado fala sobre o que lhe atrai. O que não lhe atrai, está em seu texto de maneira muita secundária, ele passa de raspão e não se detém, porque não lhe interessa.
Eu imagino que Machado, caso quisesse, poderia escrever nos mesmos modelos de crítica mais visceral que encontramos em Lima Barreto. Porém o ideal de Machado é mais estético do que social e político. E isso é um problema para a contemporaneidade, porque para ser aceito hoje, é como se ele precisasse apontar o dedo para o sistema.
O dedo que Machado aponta para o sistema não é, como disse acima, de cunho social nem político. Ele, claro, confere uma dimensão social, política e econômica aos seus personagens, são seres reais e não fantasias; mas Machado insere seus personagens e suas tramas em questões que atingem um patamar além das aparências sociais, a preocupação maior de Machado, repito, é estética.
E isso, repito, é uma espécie de calcanhar de Aquiles para o Brasil atual, porque tudo precisa ser engajado. E o que não for, se arruma um jeito de ficar.
Um parêntese aqui. Clarice é a má consciência dessa turma do punho militante. Outro parêntese: ano passado eu estava pesquisando sobre Marcel Proust e encontrei um crítico, não lembro o nome dele, que encasquetou que Em busca do tempo perdido precisava ser interpretado dentro da ótica marxista. E então o sábio pelejou com suas ideias em um combate acirrado para inserir, a qualquer custo, a mais-valia na obra de Proust. O que isso significa? Antes de responder, um esclarecimento. A crítica marxista, por muito erros que contenha, ainda continua sendo um aparelho que rende bons trabalhos literários e de crítica literária. A questão é outra. Qual? Ei-la. Imputar a todo o custo uma abordagem marxista onde não há lugar. No Brasil hoje há uma necessidade de enfiar movimentos sociais e suas ideias em escritores que nunca pensaram sobre tais assuntos.
No caso de Machado, ninguém pode dizer que, por conta da época, ele não se preocupou com problemas sociais de maneira mais intensa e direta do que a vivenciada por seus personagens. Não. Ele não o fez porque não lhe interessava. Lima Barreto e Adolfo Caminha estão aí para mostrar que havia sérios interesses em denunciar certas práticas e costumes sociais, como o racismo e a existência dos invertidos (na época se usava o termo invertido para designar pessoas que amavam sexualmente outras do mesmo sexo).
Machado é um esteta. Em todos os seus romances e contos, questões como forma, estrutura têm o mesmo valor de suas análises sociais. Diferente de Lima Barreto.
II.
Nós precisamos, hoje, afirmar algumas coisas que estão se esquecendo, à guisa de uma reescrita ideológica, até no cânone de nossa literatura.
Observem que as interpretações pessoais sempre serão válidas. Mesmo que o autor não quisesse por fim tal interpretação, a obra passa a ser de quem a lê através das leituras que cada um pode fazer.
Porém, o criticável, negativamente criticável, é afirmar que o autor disse x quando ele diz y.
Tomemos como exemplo o conto A mulher pálida.
Aqui, Machado, no uso de seu humor e de sua ironia, nos apresenta o personagem Máximo. Ele é um jovem muito bonito, conversador e que recebeu uma herança. Máximo é apaixonado por Eulália, mas esta o despreza gentilmente.
Máximo tem fixação em Eulália por conta de sua pele. Ela é muito branca!
Ele não quer saber de nenhuma outra mais. E quando estas pretendentes lhes são apresentadas, ele imediatamente compara o tom de pele da pretendente com o de Eulália e fica triste, pois nenhuma mulher tem o tom de pele de sua única mulher amada!
Pois então! Seria um texto… sobre comportamento racista? Claro, dirão alguns, Machado está criticando os racistas e criticando a sociedade eurocêntrica e escravista de seu tempo! E tem mais! O jovem morre abraçando a Morte! Quer mulher mais pálida do que esta? Machado deu um fim tragicômico ao seu personagem racista.
Ledo engano.
A crítica de Machado é para os jovens escritores ainda interessados em romantismo. É uma crítica estética.
Máximo é um poeta que sofre de amor e tem fixação na morte, um romântico. Por isso a sua fixação em mulheres pálidas. Eis um trecho do conto em que estão escritos alguns dos títulos dos poemas do jovem:
“Depois do Suspiro ao luar, veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia denominava-se Uma cabana e teu amor – houve um geral murmúrio de admiração. Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em Eulália.”
Máximo, enquanto poeta romântico, se martiriza em seus versos por um amor que sabe que não será correspondido jamais. Mas ele alimenta esse desejo ao ponto de autodestruir-se e destruir seu futuro com todas as mulheres que conhece.
A descrição de Eulália:
“Eulália – e aqui começa a explicar-se o título deste conto -, Eulália era de um moreno pálido. Ou doença, ou melancolia, ou pó-de-arroz, começou a ficar mais pálida depois da herança do Iguaçu. De maneira que, quando o estudante lá voltou um mês depois, admirou-se de a ver, e de certa maneira sentiu-se mais ferido. A palidez de Eulália tinha-lhe dado uns trinta versos; porque ele, romântico acabado, do grupo clorótico, amava as mulheres pela falta de sangue e de carnes. Eulália realizara um sonho; ao voltar de Iguaçu o sonho era simplesmente divino.”
Machado sequer usa o termo branco. Sempre se refere à pálida, à palidez, para designar o desejo carnal-estético de Máximo.
A própria morte de Máximo, por mais cômica que a cena seja, é, no fim, a realização do desejo do poeta doente ultrarromântico.
Porém, há quem insista em afirmar que esse conto, ou outros, de Machado, têm algum apelo de engajamento social. Não têm. É uma ironia machadiana contra um estilo que ainda existia em alguns círculos e Machado, vez por outra, sempre tratava de alfinetar uma estética que dependia de condições neurastênicas para se mostrar.