*Franklin Jorge
Ao visitar Helena Maria Beltrão de Barros em seu apartamento à Rua Raul Pompéia, em Copacabana, o porteiro da noite olhou-me atentamente, informou-se sobre o que eu desejava e em seguida interfonou para a artista, dizendo-lhe que um rapaz desconhecido, chamado Franklin Jorge, dissera-lhe que estaria sendo esperado. Recebendo a confirmação, quando eu já me encaminhava para o elevador, advertiu-me bruscamente: Use o de serviço; o social está quebrado.
Ao tocar a campainha da área de serviço, fui recebido por uma mulher de avental e touca e uma garrafa de azeite na mão. Supus ser a cozinheira finalizando o jantar. Mas, balbuciou, mas… O senhor não é o grande escritor que D. Helena está esperando? Disse, percebendo o embrulho com o vinho tinto e as flores que eu levara. Entre, entre! E, num tom mais baixo, “Não entendo, não entendo…”, palavras que se fizeram ouvir por minha anfitriã e sua irmã, atraídas que foram à cozinha pelo som da campainha e quiseram saber o que se passava naqueles domínios.
Dona Helena, não entendo porque seu convidado entrou pela porta de serviço. A própria Helena quis saber e eu respondi que fora o porteiro que me mandara usar o elevador de serviço, o que lhe despertou a indignação. Era só o que faltava um convidado entrar ela porta de serviço. Por favor, desça e suba novamente para ser recebido como deve. Ainda tentei tranquiliza-la; aquilo realmente não me incomodara. Por favor, acrescentou sua irmã levando-me pela mão até o elevador que ainda estava parado em seu andar. Abriu-lhe a porta e me fez entrar, acionando em seguida o botão da Portaria. O porteiro é novo no serviço, desculpou-se, visivelmente aflita e contrafeita, antes de cerrar a porta..
No térreo o porteiro explicou-se. Além de ser ainda muito jovem e de vestir uma camiseta branca de malha, pensara que eu seria o moço das entregas, pois não era costume que as moradoras do apartamento recebessem alguém vestido de maneira tão informal. Me desculpe, senhor. Dona Helena está muito aborrecida. Nunca recebi aqui uma pessoa tão jovem, importante, simples, de camiseta de malha… Tranquilizei-o, dizendo que rogaria por ele às minhas anfitriãs. Aqui vêm ministros, famosos… Mais uma vez, desculpe minha ignorância.
Superado esse incidente perturbador da ordem, devo dizer que fui recebido com honras inesperadas, como a de sentar-me numa poltrona que Helena Maria disse ser reservada ao uso exclusivo do grande poeta Manuel Bandeira [1886-1968], seu amigo e habitual convidado. Desde a sua morte, quatro anos antes, ninguém mais sentara nela, exceto eu, agora, segundo a artista, para amenizar o gesto do inconveniente porteiro que me confundira com um qualquer. À volta da poltrona percebi que as paredes estavam cobertas, de cima abaixo, por numerosos poemas curtos, escritos à mão, com os quais o poeta assinalava suas visitas durante anos de amizade, até alguns meses antes de sua morte. Pelas recomendações que recebemos a seu respeito, da parte de amigos como Walmir [Ayala], Isolda [Hermes da Fonseca], [Antônio Carlos] Villaça e Paschoal [Carlos Magno], sei que estamos recebendo um jovem potiguar de grande talento de quem a Cultura brasileira espera uma notável contribuição. Entre, por favor, entre…
Registro aqui esse encontro por ter sido de todos o mais inusitado e estranho.