*Francisco Alexsandro Soares Alves
Uma das facetas menos estudadas na obra de Machado de Assis é a música presente em sua narrativa. De várias maneiras, Machado insere elementos musicais em seu teatro do mundo: cita óperas, compositores, coloca a narrativa dentro de paralelos musicais. Durante os 15 primeiros anos de sua vida literária, ele estudou, com extrema dedicação, o repertório operístico europeu e escreveu um libreto de ópera, “Pipelet”, estreada em 1859, sob a regência de Gioacchino Giannini, maestro italiano radicado no Rio de Janeiro que foi professor de Carlos Gomes. A música para esse libreto talvez tenha sido composta pelo próprio Giannini, isso é uma suposição minha. Sobre ela as informações são escassas, sabe-se apenas que foi um fracasso de público e crítica. Há (des)informações que o compositor foi Ermanno Wolf-Ferrari, aquele do “Segredo de Suzana”, impossível. Sobretudo porque Ferrari nasceu em 1876.
Também é notável a presença do piano em todos os romances machadianos a partir de “A Mão e a Luva”, é um elemento classista. Sua presença denota a preferência do autor por personagens de classes sociais mais altas. Pois o piano, exatamente no século XIX, se torna o instrumento musical de uma classe burguesa rica e em ascensão. Mostrar–se detentor de cultura era ostentar, além de uma biblioteca volumosa, um nobre piano de cauda na sala de estar. Os grandes industriais da época, assim como os políticos mais importantes e intelectuais mais respeitados, em geral tinham por hábito exibir sua filha ou sua esposa ao piano.
“Memorial de Aires” nos apresenta o personagem Tristão, pianista: “Tristão conhece música, e à noite, a pedido dela, executou ao piano um pedaço de Wagner”. O próprio nome do personagem já é uma referência ao personagem wagneriano. Fidélia, outra personagem do romance, também tem seu nome derivado de um personagem operístico, o Fidélio, de Beethoven. Aqui, a troca de gênero é curiosa: na ópera de Beethoven, “Fidélio” é, de fato, uma mulher disfarçada de homem. Eu considero este romance, com “Dom Casmurro”, os mais emblemáticos nesses aspectos musicais.
Em “Dom Casmurro”, a própria ação se assemelha àquela do “Otelo”, mas não apenas à tragédia de Shakespeare, e sim à ópera de Rossini, que foi, de qualquer forma, baseada na obra do bardo inglês. Essa ópera bateu recordes de performances no Rio de Janeiro de Machado. O público a amava e Machado deve tê-la assistido inúmeras vezes, tanto quanto pode. Santiago pensa na ópera que assistiu quando pensamentos de morte e ciúme o atropelam. Nesse romance está uma das muitas citações a Wagner por Machado: “A música ia com o texto, como se houvesse nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner”, além disso, é também aqui que temos um capítulo chamado “A ópera”: nesse momento, Machado compara vida, Deus, Satanás, amor, pessoas, a um libreto operístico, mas a música é de Satã.
O personagem central de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é um bufão operístico: cinzento em seu humor, descarado com a vida e zombeteiro até consigo mesmo. É, também, uma espécie de bobo da corte do mundo inteiro, ao contemplar a vida a partir da morte, rir de todos e assim, rir de si próprio, para no final ainda lançar ao mundo, como suprema vitória, todas as suas faltas: “não tive filhos, não transmiti ao mundo o legado de nossa miséria”. É a mágoa e a ilusão mundana de Hans Sachs no terceiro ato dos Mestres Cantores de Nuremberg e ainda ecoa, palidamente, aquele sentimento de despedida de tudo do Falstaff, de Verdi. Brás Cubas (desen)canta a ferrugem do mundo, que mesmo com as engrenagens já gastas e corroídas, ainda decidem funcionar, sem propósito mesmo.
Uma curiosidade. Machado também compartilha um epíteto com Wagner, via Drummond. Nosso maior poeta moderno escreveu um poema chamado “A um bruxo, com amor”, no qual faz referência à casa número 18 da rua Cosme Velho, onde Machado morou. E assim é que “Bruxo do Cosme Velho” ganha força, designando Machado. Em sua crítica jornalística, Claude Debussy, compositor francês, denomina Wagner de “Bruxo de Bayreuth”.