*Catarina Rochamonte
A política – constituída na Antiguidade como amor à lei, anelo pela justiça, reflexão e prática em torno do bem comum e do melhor regime – transforma- se, a partir da modernidade, naquilo que Platão buscara superar: a concepção de justiça e de política como imposição da força, como jogo de poder, astúcia e aparência. A vida bela, contemplativa e justa passa, na modernidade, de nobre ideal e finalidade do homem para ideia vazia, irrealizável, desprovida de sentido e, por conseguinte, abandonada.
A virtude, considerada na antiguidade como elemento norteador, como fulguração do bem traduzida na ideia de Justiça, sofre um rebaixamento de valor e decai ao patamar de eficácia para obtenção da ordem e da paz social necessárias à manutenção da vida; ou seja, aquilo que antes era meio torna-se fim e aquilo que era fim torna-se nada no pensamento de Hobbes e Maquiavel, pensadores que, conscientemente, inauguram o pensamento político moderno com a rejeição explícita de toda filosofia política anterior. O esforço máximo e a máxima virtude encontram agora seu fim na conquista e manutenção do poder. O fim máximo é o Estado.
É em Maquiavel que a palavra Estado toma seu sentido moderno. Embora não a tenha definido, ele a utiliza referindo-se a todos os domínios que tiveram ou têm império sobre os homens, seja na forma de principado ou república. Na filosofia política moderna, há uma linha de pensamento dos adoradores do Estado e do poder que se inicia com O Príncipe de Maquiavel, passando pelo Leviatã de Hobbes, pela Vontade Geral de Rousseau e culminando no Absoluto de Hegel.
O Estado é o instrumento de dominação do homem, por intermédio de lei ou de milícia. Essa realidade, a do Estado e do poder, é a única dimensão considerada por Maquiavel; é ela a realidade concreta, seu início (archē) e seu fim (telos). Não há transcendência. Religião e moral são fatores sociais, logo, não há justiça ou virtude como um valor em si e o imoralismo da sua obra principal é uma decorrência lógica do seu materialismo e pessimismo. O próprio Foucault, filósofo materialista francês contemporâneo, pouco afeito a questões transcendentes, mas bastante atento às questões do poder, explica bem essa transição ou ruptura da arte de governar iniciada por Maquiavel:
“Passa-se de uma arte de governar, cujos princípios foram tomados de empréstimo às virtudes tradicionais (sabedoria, justiça, liberalidade, respeito às leis divinas e aos costumes humanos) ou às habilidades comuns (prudência, decisões refletidas, cuidados para se acercar de melhores conselheiros), a uma arte de governar cuja racionalidade tem seus princípios e seu domínio de aplicação específico no Estado”.
Desconsiderando o conceito clássico de virtude como um fim ou um valor em si mesmo, Maquiavel passa a descrevê-la como a soma dos hábitos necessários para um determinado fim, entendendo que esse fim, dentro de um contexto político, pode justificar quaisquer meios. Pretendendo tratar não daquilo que deve ser, mas daquilo que é, o pragmatismo político de Maquiavel abre caminho para a emergência da “razão de Estado” em detrimento da moralidade, assentando em uma antropologia pessimista seu diagnóstico de que o mundo político é mau ou moralmente neutro.
Na preleção intitulada As três ondas da modernidade, Leo Strauss nos fala da fé bíblica secularizada como característica peculiar da modernidade, querendo dizer com isso que a modernidade preserva “pensamentos, sentimentos ou hábitos de origem bíblica”, ao mesmo tempo em que perde ou atrofia a própria fé na religião. Pois bem, à atrofia do sentimento religioso corresponde a atrofia da antropologia, passando o homem a ser concebido de uma maneira mais rasa e pessimista, justamente por passar a ser compreendido apenas a partir de si mesmo, fazendo do “homem medida do homem” o último critério, tal qual apregoava o humanismo típico dos sofistas que Platão esforçou-se tanto por superar.
Considerado sem levar em consideração a ordem maior que o contém, apartado da concepção de justiça como conformidade à ordem divina ou ordem natural, o homem rebaixa o olhar para o mundo em que vive, descurando aquele no qual deve viver. Sendo assim, “A virtude não deve ser entendida como aquilo em cujo nome a República existe, mas a virtude existe exclusivamente em nome da República; a vida política propriamente dita não está sujeita à moralidade”.
A meta política, explica Strauss, torna-se mais baixa e mais “em harmonia com o que a maioria dos homens deseja.” Ela se torna mais viável porque já não se trata de combater os vícios no homem, mas de controlar por instituições fortes os homens viciosos. O caminho da modernidade se torna então o caminho do egoísmo esclarecido.
Um ponto enfatizado por Strauss no referido ensaio é o modo peculiar como Maquiavel concebe a relação do homem de virtú com o acaso, o inesperado, o contingente, o caótico, o casual, o imprevisível: “A fortuna, afirma Maquiavel, é uma mulher que pode ser controlada pelo uso da força”.
Talvez não haja maior sintoma de rebeldia e revolta do homem do que a recusa em reconhecer nas circunstâncias do suposto acaso uma fatalidade, uma providência ou uma ordem mais profunda à qual se faz necessária uma adaptação com maleabilidade, resignação, fé ou boa vontade. Essa é uma das características dos sábios: uma adaptabilidade ao curso natural e muitas vezes incontrolável das coisas.
Maquiavel, porém, reclama tal adaptabilidade sob a forma de esperteza, ardil. Se o Evangelho de Jesus nos exorta a sermos “simples como as pombas e prudentes como a serpente. (Mt 10:16)”, Maquiavel exorta o príncipe a acrescentar à prudência da serpente a astúcia da raposa. Cruel, amoral e ardiloso: eis o príncipe; eis o político, alguém a quem a rigidez dos princípios éticos não diz respeito, embora possa valer-se da defesa de tais princípios em seus discursos, no jogo retórico do poder no qual impera a hipocrisia.
A visão de Maquiavel, guardadas as suas originalidades, não destoa do clima geral da modernidade no contexto da emergência da ciência natural. Rejeitada a noção de causa final constante na ciência antiga aristotélica, a natureza passa a ser vista como um grande mecanismo cuja compreensão da engrenagem dota o homem de um singular poder. O homem põe a natureza em questão e a conquista para o seu sentido de eficácia. Não se trata mais do saber pelo saber, tão caro aos antigos, mas do saber que tem poder, saber para o poder: scientia propter potentian.
Distante da ideia de natureza como ordem maior a envolver o homem, a própria noção de ordem passa a ser pensada como algo que estaria na sua exclusiva dependência, daí a ideia posterior do Estado como o resultado de um pacto racional; daí a necessidade do poder para impor a ordem, já que esta não seria divina, natural ou espontânea, mas artificialmente imposta para conter os homens, que, geralmente, “são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho”. A sociabilidade não é natural e o homem, portanto, não é um animal político, mas o político/o príncipe pode ou deve ser pior que o animal: a ele é permitido ser uma besta cruel a fim de assegurar a ordem social, a estabilidade do poder.
Essa ordem artificialmente fundada pela força para se impor sobre o homem só subsiste apartada da ética. São dois mundos distintos que não conversam entre si: o mundo da virtude, das ideias, dos ideais, dos valores supremos, do bom, do bem e do belo e o mundo da política, do poder, da artimanha, da falsidade, da astúcia, da eficácia, da crueldade, da impiedade.
Com Maquiavel rompe-se, portanto, o pensamento que busca conciliar política e ética ou política e justiça porque, no seu pensamento político, rompe-se a própria noção de Justiça (Dike) como a mais excelente virtude (Areté). A expressão italiana virtú, da forma como é utilizada por Maquiavel, não pode ser interpretada como virtude propriamente dita. Ela é, na verdade, a negação e o ataque à virtude em seu sentido clássico e cristão. Só dentro do maquiavelismo, que pressupõe um retrocesso de milênios em termos de ética e moralidade, a virtú pode ser virtude. Olhando por esse prisma, O Príncipe traz para o pensamento político um atraso enorme. É o retorno à visão de mundo de Trasímaco, personagem da República de Platão que afirma a força e não a justiça ou que tenta submeter o conceito de justiça ao conceito de força, ao afirmar a justiça como vantagem do mais forte.
A virtú de Maquiavel diz respeito à capacidade de submeter a fortuna por meio da força, da inteligência e da falta de caráter. A noção de eficácia, tão característica de toda a modernidade, faz-se central no pensamento político pragmático e supostamente realista de Maquiavel. O fim pelo qual se aquilatará tal eficácia é a conquista do poder e a manutenção do poder. Somente os fracos e os tolos, não o Príncipe, submetem suas ações à justiça e ao bem. Diz Maquiavel: “Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a penar entre tantos que não são bons. É necessário, portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, em cada caso, conforme seja necessário.”
Vê-se que Maquiavel não leva à sério a tradicional distinção entre virtudes e vícios, tratando de tal distinção apenas no âmbito da aparência. O príncipe não precisa se preocupar com seus vícios, desde que aparente aos súditos ser virtuoso; mas, caso insista em ser realmente virtuoso, no sentido de tentar sempre agir bem, tal inflexibilidade ou retidão de caráter o levaria à ruína. O homem de virtú, portanto, tem uma moral de conveniência. Não estando preso à camisa de força da moralidade, pode ou não ser bom, a depender da circunstância.
Se na filosofia clássica e na Bíblia havia, em meio às evidentes diferenças, a fundamental semelhança da compreensão do aspecto transcendente da justiça, tal aspecto será, como já vimos, rejeitado por Maquiavel. Atenas e Jerusalém partem de percepções da natureza humana para além da natureza bruta, apontando para aquilo que o homem pode efetivamente ser a partir dessa natureza dada. O ser humano é dotado de um télos, de um fim. Ele tende à perfeição. É próprio da natureza humana o aperfeiçoamento da sua própria natureza.
Na modernidade, porém, abandona-se a noção de teleologia própria do homem ao mesmo tempo em que se vai gestando uma noção de teleologia própria da história. O homem, ser racional e espiritual, não tende mais ao bem e à justiça, mas, paradoxalmente, a sociedade, formada por esses homens sem finalidade, tenderia para determinado fim.
O fato é que a ruptura com a política clássica deu-se enquanto escolha do amor pelo poder a despeito ou em detrimento do amor pela Justiça. A política – tradicionalmente pensada como exercício da liberdade de indivíduos imersos em uma comunidade exercitando a busca do bem comum por meio da reflexão acerca do melhor regime e da elaboração das melhores leis – passa a ser compreendida simplesmente como proposta de domínio, como exercício de poder, e o maquiavelismo, bem disfarçado sob a roupagem de realismo político, passa a servir como uma luva às agremiações políticas de viés revolucionário, cujo modus operandi pressupõe o desprezo pelas ideias elevadas de moralidade. Os intelectuais orgânicos de tais instâncias político-partidárias não tiveram pejo em corroborar teorias que põem a ética a serviço do poder, fundando seu ideário político no artifício e na hipocrisia.