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A Praia dos Artistas

Escritor acreano, residente em Natal, faz a cartografia humana e afetiva de Natal

Antonio Stélio Araújo Castro

O Universo é feito de pedaços.

Um ajuntamento infinito. De finitudes.

Um modesto espaço, no entanto, pode satisfazer a alma humana. Pode também enternecer o coração ou aquietar a mente, quando se revela obra de arte. E, quando a beleza se mostra em retrato esculpido, o pedaço se registra de maneira única, original, como parte que se acentua no mosaico universal, como o itálico que se sobressai no texto.

Ou seja, não passa despercebido.

É que, escultura divina, tem genialidade intrínseca. É tudo tão simples, que custa crer. E nem precisa pagar pra ver. A Praia dos Artistas, incrustada na margem esquerda da Ponta do Morcego, é um pedaço do Universo que pertence ao bairro Praia do Meio e seduz o transeunte menos sensível. Tem beleza na medida.

E história pra contar.

Seu pequeno coqueiral, sua areia molhada, sua maré atrevida, suas pedras esculpidas e seu arrecife prudente, não deixam de ilustrar a costa como uma pintura disposta em composição coerente, magistralmente harmônica, assemelhando-se a uma tela viva que pulsa com a sonoridades das ondas.

Quem poderia pintar um quadro assim?

Nos idos dos anos oitenta aportei pela primeira vez no solo potiguar, como um poeta andarilho a vender poesia em pôster e vivendo dos versos que a verve produzia. Não por outro motivo, eu dormi debaixo do coqueiral da Praia dos Artistas e acordei com a chuva umedecendo meu rosto. Foi amor de supetão: era a vista que serenava a alma. Depois desse dia, ela nunca mais deixou meu coração.

A imagem tem força de palavra.

E até hoje não me canso de vislumbrar, seja cedo da manhã ou pela hora do ocaso, a beleza da praia que me encanta há mais de três décadas. Vez por outra me pego no quiosque do João Gilberto, a tomar caldo de cana olhando os surfistas a brincar com as ondas, e ainda os coqueiros com suas folhagens em danças trêmulas, semelhante aos cabelos das meninas bonitas ao vento.

A paisagem, desde sempre, parece imutável.

A Praia dos Artistas – regozijo-me em lembrar – também foi marcada por um movimento cultural que reuniu dezenas de talentos locais. A chamada Galeria do Povo agitou, na década de setenta, a arte na cidade. A iniciativa foi capitaneada por Eduardo Alexandre, o Dunga. O movimento mostrou não só o trabalho, mas também a irreverência dos artistas de Natal.

Arte e protesto, nos muros da praia.

Eram poetas, pintores, fotógrafos, entre outros que protestaram contra a ditadura militar, que matava e torturava em seus porões. Nomes como os de Assis Marinho, Léo Sodré, Giovani Sérgio, Argemiro Lima, Marize Castro, Volonté, João da Rua e Flávio Resende, ao lado de tantos outros talentos, não deixaram passar impune a ignomínia daqueles tempos.

A praia era, efetivamente, dos artistas.

Aliás, o nome da praia se deve ao trânsito de músicos e cantores, que vinham a Natal para fazer shows, em meados da década de sessenta, que se hospedavam no recém-inaugurado Hotel Internacional dos Reis Magos. Os artistas passeavam pelo calçadão, onde davam autógrafos e conversavam com os fãs. Assim, aquele cantinho da Praia do Meio – que vai do Hotel ao Chaplin – virou a Praia dos Artistas.

O batismo tinha a sua razão de ser, pois.

A tese ainda é reforçada pela existência, na época, da famosa Casa da Música, há um quarteirão do hotel, onde foram realizados centenas de shows com artistas renomados nacionalmente. Alceu Valença, Elba Ramalho, Nelson Gonçalves, Geraldo Azevedo, Gonzaguinha, Jorge Ben, Jackson do pandeiro, Moreira da Silva e Gonzagão, entre outros, fazem parte da longa lista de celebridades que contribuíram para batizar aquele trecho com o novo topônimo.

E tudo aliado com a musicalidade do mar.

A Praia dos Artistas também marcou uma geração de natalenses que frequentou o local durante as décadas de setenta e oitenta. Alguns senhores que hoje ostentam uma pequena protuberância abdominal e cabelos brancos, eram os rebeldes cabeludos dos tempos do Bar Caravelas, de tantas memórias. Muitos namoros e casamentos tiverem origem por ali. A beleza e a juventude da classe média natalense já desfilaram naquela areia.

E eu, nela, comecei a minha história.

Quem não tem a sua?

Antonio Stélio Araújo Castro,  escritor e jornalista.