Mario Vargas Llosa
«Borges perturbou a prosa literária espanhola de uma forma tão profunda como Rubén Darío fez antes, na poesia. A diferença entre os dois é que Darío introduziu alguns costumes e temas -que importou da França, adaptando-os à sua idiossincrasia e ao seu mundo- que de alguma forma expressavam os sentimentos (esnobismo, às vezes) de uma época e de um ambiente social. É por isso que eles poderiam ser usados por muitos outros sem que os discípulos perdessem a voz. A revolução de Borges é de um homem só; representa-o e apenas de forma muito indireta e tênue o ambiente em que se formou e que ajudou decisivamente a formar (o da revista Sur). Em qualquer outro que não ele, portanto, seu estilo soa como uma caricatura.
Por isso, é claro, não diminui sua importância nem reduz em nada o enorme prazer que dá a leitura de sua prosa, uma prosa que pode ser saboreada, palavra por palavra, como uma iguaria. O que há de revolucionário nisso é que na prosa de Borges há quase tantas ideias quanto palavras, pois sua precisão e concisão são absolutas, algo que não é incomum na literatura inglesa e mesmo francesa, mas que, por outro lado, em A língua espanhola tem poucos precedentes […]. O espanhol, como o italiano e o português, é uma língua rica em palavros, abundante, pirotécnica, de formidável expressividade emocional, mas, por isso mesmo, conceitualmente imprecisa.
As obras de nossos grandes prosadores, a começar pela de Cervantes, aparecem como soberbos fogos de artifício em que cada ideia desfila precedida e cercada por uma suntuosa corte de mordomos, galantes e páginas cuja função é decorativa. Cor, temperatura e música importam tanto em nossa prosa quanto ideias e, em alguns casos, mais. Não há nada de condenável nos excessos retóricos típicos dos espanhóis: eles expressam a profunda idiossincrasia de um povo, um modo de ser em que o emocional e o concreto prevalecem sobre o intelectual e o abstrato.
Esta é fundamentalmente a razão pela qual um Valle-Inclán, um Alfonso Reyes, um Alejo Carpentier ou um Camilo José Cela – para citar quatro magníficos prosadores – são tão numerosos quando se trata de escrever. A inflação de sua prosa não os torna menos inteligentes nem mais superficiais do que um Valery ou um T.S. Eliot. Eles são simplesmente diferentes, assim como os povos latino-americanos dos ingleses e franceses. As ideias são melhor formuladas e captadas, entre nós, encarnado em sensações e emoções, ou incorporado de alguma forma ao concreto, ao vivenciado diretamente, do que em um discurso lógico. Talvez por isso tenhamos em espanhol uma literatura tão rica e uma filosofia tão pobre, e por que o mais ilustre pensador moderno da língua, Ortega y Gasset é sobretudo literário.
Dentro dessa tradição, a prosa literária criada por Borges é uma anomalia, uma forma que desobedece intimamente à predisposição natural da língua espanhola ao excesso, optando pela mais estrita parcimônia. Dizer que com Borges o espanhol se torna “inteligente” pode parecer ofensivo a outros escritores da língua, mas não é.
Bem, o que estou tentando dizer é que, em seus textos, há sempre um plano conceitual e lógico que prevalece sobre todos os outros e do qual os outros são sempre servidores. O seu é um mundo de ideias, incontaminado e claro – também inusitado – que as palavras expressam com extrema pureza e rigor, que nunca traem ou relegam a segundo plano. “Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos rendemos”, diz o narrador de “O Imortal”, com frases que retratam Borges em todo o seu corpo. A história é uma alegoria de seu mundo ficcional, em que o intelectual sempre devora e desfaz o físico.»
Mario Vargas Llosa
As ficções de Borges
Marbella, outubro de 1978
Pintura de Kazimir Malevitch, 1913
Black Circle