*Luís da Câmara Cascudo
Em 27 de outubro de 1766 concedia-se a Manoel Raposo da Câmara uma data entre a casa de Manuel D’Araújo Monteiro e o caminho que passa pela cruz defronte da bica de beber água. Essa cruz era um dos marcos delimitadores do sítio da Cidade, extremo sul. Ficava ao pé do córrego que alimentava o fio d’água, canalizado rusticamente numa bica. Esse riachinho era chamado Rio do Baldo ou Bardo, Rio da Bica, Rio de Beber. O nome indígena fora Tiuru segundo Barlaeus, ou Tissuru, na “Descrição de Pernambuco em 1746”. Em outubro de 1766 estava a cruz junto à bica. A bica estaria baixa, vizinhança do córrego. Este passava dentro duma mata, densa e verde.
Com passar dos anos, a bica foi mudada mais para o alto e as árvores fecharam, recobertas de lianas e cipós, os espaços abertos.
A cruz desapareceu nesta cortina impenetrável. Não havia, evidentemente, devoção alguma.
Posso agora afirmar que o fundador da devoção à Santa Cruz da Bica foi Claudino Joaquim de Melo, e não Claudino José, como escrevi. João Estevão Gomes da Silva e Luiz de França Ferreira Taumaturgo levaram-me até uma filha de Claudino Joaquim de Melo, a velha Francisca de Albuquerque, viva e sabendo conversar. Nesse domingo, 19 de maio de 1940, revivi a crônica da Santa Cruz da Bica, partindo da casinha n°803, na Rua Padre Pinto, antiga Rua do Fogo.
Retifico, pois, dados registrados na história dessa devoção popular em Natal.
Francisca de Albuquerque é maior de setenta anos. O pai, então menino, em companhia de dois irmãos, Trajano e Lopo, foram cortar madeira na mata da bica, para uma construção de casa.
Depararam com a cruz, no seio da floresta, enrolada nas fitas das folhagens madeiro resistente, de duro cerne, escuro pelo tempo, danificado por pessoas da família e vizinhos, arrancaram a cruz do primitivo local, conduzindo-a para onde se encontra, a praçuela formada pelo fim das ruas 21 de março e Voluntários da Pátria, perto do Baldo. E iniciaram, logo no primeiro dia da Santa Cruz, 3 de maio, as oblacionais festas. Não havia assistência religiosa do pároco. Um dos fiéis tirava o terço, cantado pelo povo, com acompanhamento musical. A devoção se espalhou e, cada ano, crescia o número de assistentes, pagando promessas. Uma delas consistia em conservar aceso um lampião. Nos arredores era a luz única. Também as primeiras cantoras eram duas cegas, famosas pela voz límpida, de extensão notável. Adriana cega, tocava pandeiro, e Maria Rosa Ferreira, violão.
A República, 01 de maio de 1940.