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A tempestade beethoveniana

Colaborador de Navegos escreve sobre sinfonia de músico alemão que transfigura a natureza  em sonoridades que são bençãos na forma de riachos, verde, pedras, canto de pássaros, tempestades e ações de gralhas derramadas sobre o homem .

*Alexsandro Alves

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“Duas coisas sempre me enchem a alma de admiração e veneração: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”, (Immanuel Kant). A frase resume a posição do homem no Iluminismo. Beethoven é um homem de seu tempo em muitos aspectos, no plano filosófico, abraçou estes ideais, no plano político, é filho dos franceses de 1789. Mas há uma enorme diferença de Beethoven para os revolucionários: o compositor buscava o espiritual. Não que fosse um religioso no sentido ortodoxo, que frequenta igrejas ou segue alguma doutrina. Longe disso. Beethoven buscava a Deus na natureza. Aqui, o eu de Beethoven reinterpreta a máxima kantiana.

A natureza era sagrada para ele e a lei moral que seguia, dentro dele, dizia respeito ao relacionamento do homem com a natureza. O Deus de Beethoven não expulsou o homem do Paraíso. As longas caminhadas que fazia pelos bosques, sozinho ou acompanhado, eram momentos de grande introspecção. Seu céu estrelado era verde, vermelho, rosa, branco, preto, seus astros saltitavam emplumados em árvores derramando pequenos sons, rastejava e cavava a terra, brilhava como cristais deslizando nos riachos, oferecia sombra quando havia sombra, oferecia Sol quando havia Sol, oferecia chuva quando havia chuva e sempre oferecia alegria.

Por vezes, Beethoven tentou aproximar suas crenças de crenças mais tradicionais. Seu oratório “Cristo no Monte das Oliveiras”, op. 85, todavia, nunca foi bem recebido. Sua “Missa em Dó Maior”, op. 86, da mesma forma, sendo que essa ainda encontrou resistência nos editores. O oratório beethoveniano reinterpreta a figura de Cristo como um herói trágico. Cairia bem no palco de ópera, mas Beethoven não pensou nisso. Hoje, é difícil haver execuções dessa obra. Já a missa, se foi evitada em seu tempo, hoje tem destino melhor do que o opus 85.

Todavia, urgia o desejo de expressar uma conversa com o sagrado. O oratório foi a primeira tentativa, embora tenha número de publicação (opus) posterior à sinfonia tratada neste artigo, ele foi composto antes, em 1803, mas só publicado em 1811. A missa foi composta um pouco antes da sinfonia, em 1807. A Sinfonia n.º 6, em Fá Maior, op. 68, “Pastoral”, de 1808, é, portanto, o primeiro diálogo entre Beethoven e suas crenças que se consolidou para a posteridade desde sua estreia – ocorrida em 22 de dezembro de 1808, no Theater an der Wien, de Viena, juntamente com a Quinta e outras obras. Beethoven voltaria a essa conversa íntima com seu Deus na “Missa Solemnis”, em Ré Maior, op. 123 e na Nona Sinfonia, em Ré Menor, op. 125, em ambas as obras, mais transcendental e místico do que na “Pastoral”.

No opus 68, a natureza se transfigura e acolhe os homens. Essa partilha de bençãos na forma de riachos, verde, pedras, canto de pássaros, tempestades e ações de graças, é derramada em sonoridades que falam de afetos primevos, alguns mesmo infantis: brincar na grama, deitar-se à sombra de uma árvore e ouvir rouxinóis, contemplar o tempo que passa nas águas de um riacho, se esconder de uma tempestade. São aspectos e intenções diametralmente opostos aos da Quinta.

Essa sinfonia é uma antecipação da música programática romântica. Embora que Beethoven tenha expressado, sempre que pode, que a obra trata de expressões de sentimentos diante da natureza, e não de uma pintura da mesma. Porém, os diálogos entre a flauta, o oboé e o clarinete no final do segundo movimento, onde na partitura está escrito, por sobre a música da flauta: “Nachtgall”, do oboé: “Wachtel” e do clarinete: “Kukuk” – rouxinol, cordona e cuco, respetivamente – são mesmo pinturas auditivas.

O canto desses pássaros se escuta em vários outros compassos dessa aquarela de poesia sonora. E possuem um simbolismo: amor (rouxinol), verão (cuco) e providência divina (codorna). E há os trovões e relâmpagos do quarto movimento. Podemos concluir que, ao lado da expressão de sentimentos, priorizada por Beethoven, caminham as pinturas. Essa sentimentalidade beethoveniana que busca acolhimento no verde já é romântica.

Aqui, não temos quatro movimentos, como tradicionalmente nas sinfonias até então, mas cinco. São eles:

  1. “Erwachen heiterer Empfindungen bei der Ankunft auf dem Lande – Allegro ma non troppo”: Despertar de sentimentos alegres por chegarem no campo – Rápido, mas nem tanto;
  2. “Szene am Bach – Andante molto moto”: Cena no Riacho – Andando muito movimento;
  3. “Lustiges Zusammensein der Landleute – Allegro (Scherzo) – In tempo d’Allegro (Trio)”: Confraternização feliz dos campesinos – Rápido (Brincadeira) – Em tempo rápido (Trio);
  4. “Gewitter, Sturm – Allegro”: Trovoada, tempestade – Rápido;
  5. “Hirtengesang, Frohe und dankbare Gefühle nach dem Sturm – Allegretto”: Canto do pastor, canção de ação de graças após a tempestade – Rapidinho.

Há, de fato, uma história sendo contada. A expressão de sentimentos dá-se pelas paisagens naturais que inspiraram esses sentimentos transpostos para acordes, pausas e andamentos musicais e pelo relaxamento do corpo ante o Belo na natureza, dialeticamente. De todas as sinfonias de Beethoven, esta é a mais corporal. Sua fruição dá-se no corpo mais do que em qualquer outra sinfonia dele, porque “ser humano”, para o Beethoven da Pastoral, é “estar na natureza”. Cada sombra de árvore é um templo que convida o homem ao descanso e, a partir dele, à elevação. De forma que o divino está ao nosso redor, tanto na graciosidade de uma tarde de Sol, quanto na busca por uma proteção das tempestades.

E falando em tempestade, Beethoven permaneceu muito tempo imaginando essa parte da sinfonia, o quarto movimento. Como fazer nascer a tempestade? Havia vários exemplos, os mais notáveis eram os de Haydn em obras como “Die Schöpfung”, “A Criação” (por sinal, um oratório bíblico!). Sem dúvida é nessa música sacra de seu professor que Beethoven busca inspiração para várias passagens da Pastoral – o que descortina ainda mais seu caráter sacro, embora sem uma única palavra. As vozes de animais na partitura de Haydn, as descrições dos dias de criação, com a obra de Javé e seus anjos, a criação da flora e da fauna, encontram paralelo nesta “criação” de Beethoven. Mas e a tempestade?

Ao examinar esses momentos nas obras de outros compositores, Beethoven notou que sempre havia uma preparação harmônica, melódica ou rítmica para desencadear a torrente pluvial na sequência. E algo não estava certo, para Beethoven. Por que precisa haver essa preparação? Se quando estamos alegres na natureza, muitas vezes, não percebemos a tempestade chegando? Ela simplesmente chega e nos dispersa. Naturalmente. E assim, Beethoven não faz preparações para a chegada de sua tempestade, ela simplesmente desaba e aos poucos vai findando. E o mais belo de tudo, é que após a tempestade pegar a todos de surpresa, acabando com a festa, acabando com a contemplação, que emana o canto de ações de graça do pastor, o quinto movimento. Começa já com a melodia principal no clarinete que é acompanhado pela trompa e em seguida, toda a natureza, nas cordas, entoa esse tema cordialmente, elas cantam! Tem muita ternura, frescor, delicadeza, é uma gentileza de nossa mãe.

Gaia presenteia seus filhos com contemplação, com Sol, com descanso, mas também com fugas e chuvas. E após toda essa irmanação dos seres, os últimos acordes da Pastoral são de agradecimento pela vida, são de gratidão. Ela termina com um acorde cheio e forte, mas não agressivo – é uma luz que se abre.

Uma execução dura em torno de 45 minutos. Abaixo, um link para uma gravação com Christian Thielemann.

https://www.youtube.com/watch?v=CpMIsPfjK-Y&t=192s&ab_channel=250thChannel