*Maria Maria Gomes
Em uma de minhas leituras, talvez em tempos remotos, já nem lembro em qual e nem quando, memorizei uma citação de William Shakespeare cuja ideia se instalou em minha mente de tal forma amalgamada que não havia meio de tirá-la de mim, nem mesmo com os poderes do lendário Rei Artur da Távola Redonda, tão inglês quanto o escritor William. Ei-la: “É incrível ter a força de um gigante, mas é uma tirania usá-la como um gigante. ”
Por forças do momento atual eu me vi pensando, enquanto assistia ao espetáculo dos pássaros que voavam no céu azul do Seridó. Bandos tão livres e nós, involucrados em nossas gaiolas. Como a vida nos surpreende e nos coloca em saia justa diante da importância que se deve dar a ela mesma!
A vida é genial e ao mesmo tempo misteriosa. Sua genialidade se desenha na dialética que permite o movimento da natureza e, mesmo assim, com toda essa expressão que nos leva a modificar o que se pode, ela é mística. Sua finitude é para os céticos, todavia é ainda mais complexa para os não céticos que adotam a religiosidade e o espírito como habilidades de interpretação e explicação para os fenômenos que ela, a Vida, nos supõe como definitivos.
O momento atual tem nos surpreendido com uma pandemia comparada à gripe de 1918, conhecida como a gripe espanhola, que vitimou aproximadamente de 50 a 100 milhões de pessoas. Há incontáveis estudos e especulações a respeito do vírus que causa a doença Covid19 e estudiosos do mundo inteiro têm se debruçado em artigos e pesquisas científicas importantes a fim de chegarem a resultados positivos para o combate à peste. Há, ainda, pessoas que atribuem o “fenômeno” às intervenções divinas em expiação dos pecados cometidos pela humanidade. O gigante ainda não foi vencido por Davi! A cada dia se agiganta na performance de Golias; engolindo aqueles que amamos e até quem não conhecemos, mas ficamos sentidos e dolentes, compreendendo a dor do outro que perdeu um ente.
Opiniões e conjecturas à parte, o fato é que estamos vivendo uma realidade jamais imaginada pelo homem de hoje, viciado em Ter em troca do Ser. Talvez o meu olhar pareça o dobrar de uma esquina em uma rua sem saída. Mas, convenhamos, ninguém sabe o nosso destino daqui para a frente, temos apenas a convicção do momento exato, dos segundos que passam em nosso relógio. A insegurança e a efemeridade são almas gêmeas detentoras de uma absoluta autonomia que gira na direção horária. Ou anti-horária, uma vez que regredimos em alguns aspectos, a exemplo das relações familiares esquecidas há décadas e substituídas por mecanismos tecnológicos. Eu arriscaria citar a série de desenho animado The Jetsons, da Hanna – Barbera, exibida na TV entre as décadas de 60 a 80 do século passado. E eu assistia a todos os episódios sem jamais imaginar que, um dia, eu seria a senhora Jetson realizando minhas compras através do sistema Delivery e conversando com amigos ou em reuniões de trabalho via computador.
Agora, podemos nos ver no espelho com mais calma, sem a velocidade diária prescrita na lei da obrigatoriedade trabalhista de chegar na hora e bater o ponto, de sair correndo para cumprir e fechar metas, sem a loucura exigida pelo consumo e pelo dinheiro. E agora, José? Drummond diria isso! O que vai fazer com o montante que juntou a vida toda e nesse momento, nem o seu funeral pode ser velado por quem lhe dizia tanto amar?!
Literalmente a humanidade está lutando pela vida! É uma batalha pessoal e intrasferível, de maneira que, ou o indivíduo se cuida, se previne e busca o isolamento como alternativa para salvar-se e aos seus, ou sucumbe-se às portas de um sistema de saúde desolado e moribundo. É deplorável ver nossos iguais por um fio e nossos braços atados como pessoas escravizadas em um pelourinho, renegados ao tempo e às circunstâncias advindas de uma sociedade demente.
E a vida? O que ela tem a nos dizer?
A minha suposição, tornando a Vida como uma persona, é que ela nos apresenta uma excelente oportunidade de reflexão. Posso até dizer que estamos em processo de Confissão Individual com o Divino Interior, em análise de nossos protocolos sociais e pessoais. Há dias penso nos poucos cabedais: roupas, sapatos, algumas joias sem muito valor, livros, objetos antigos e algumas louças de um pretérito mais que perfeito, chegados a mim pelas mãos maravilhosas de pessoas sentimentalistas.
As reflexões que me assaltam, nas horas em que divago, ensinam-me a preservar os sentimentos e a valorizar as amizades autênticas, porque são elas que permanecem em nossa viagem rumo ao encantamento. O material para seguir o caminho é, certamente, o suficiente, afinal, para que me servem os anéis se os dedos, misturados à terra, serão substância para os vermes?
Nem Shakespeare nem o Rei Artur da Inglaterra entenderia a força gigantesca de um parasita que infectaria as células humanas e se propagaria à velocidade da luz. O conceito de força para o primeiro, imagino, faz referência à política e à semântica. Para o segundo, é mais relacionado ao poder físico, embora a sua metáfora se traduza em resiliência. Todos estamos em uma guerra onde a morte se fantasia de gigante para perpetuar a tirania.
Enfim, continuo com a frase amalgamada em minha mente, martelando uma rocha cuja densidade só é medida pela Escala de Mohs. Apesar de tudo, acredito no ser humano e anseio por uma tomada de direção que nos leve a uma trilha menos áspera com flores se espraiando pelo caminho. O gigante será vencido!