*Carlos Russo Jr
Marcel Proust nos convida a uma imagem da eternidade. Mas a eternidade que ele nos faz vislumbrar não é a de um Platão ou de um Spinoza, na medida em que se trata de um eterno sem um tempo infinito, mas que possui sim, um tempo entrecruzado. Entrecruzado entre as reminiscências da memória (internamente) e o envelhecimento (externamente).
Pois compreender a interação do envelhecimento e das reminiscências conscientes e subconscientes significa penetrar no âmago do coração proustiano, ou seja, no universo do tempo entrecruzado.
“Em Busca do Tempo Perdido” como obra da memória involuntária, possui uma força rejuvenescedora capaz de enfrentar de uma maneira satírica e dramática o cruel destino do envelhecer.
Proust conseguiu, em torno de uma vida revivida, deixar que um mundo inteiro também envelhecesse, galvanizando toda uma vida humana a um máximo de consciência.
Em o Tempo Recuperado, no último livro de sua odisseia, após aguardar na biblioteca do Palácio de Guermantes que o término de um concerto ocorresse, o personagem Marcel penetra no salão de recepções. Ele que estivera tanto tempo afastado da sociedade tinha a impressão de adentrar nos bastidores de um teatro ou num baile à fantasia, com a diferença que, no teatro real, busca-se exagerar a dificuldade em reconhecer a pessoa fantasiada.
Contrariamente, naquele teatro da vida, ele deveria dissimular ao máximo, sentia que nada possuía de lisonjeiro em não reconhecer as pessoas, pois nenhuma transformação fora intencional. E a mesma dificuldade que o Narrador, Marcel, apresentava, os outros também as tinham em relação a ele.
Sem dúvida, a decadência da aristocracia e da alta burguesia de final do século XIX é a Imperatriz do Baile!
O fato é que todos tinham levado tanto tempo para incorporar a própria máscara que esta, em geral, passava desapercebida daqueles com quem conviviam. Muitas vezes lhes concediam uma dilação, mediante a qual podiam continuar a ser eles mesmos até bem mais tarde. Mas então, o disfarce prorrogado se fazia com mais pressa; de qualquer modo, era inevitável.
Como Marcel havia estado por tantos anos ausente, era se como se as fantasias fossem recém incorporadas a cada personalidade que reencontrava.
Deixemo-lo descrever:
“Mais que a um simples baile de máscaras, o que eu encontrara, então, estava mais próximo de um teatro de fantoches, onde, para se identificarem as pessoas conhecidas fazia-se necessário decifrar, a um só tempo, vários planos situados por detrás delas, e que lhes conferiam profundidade, obrigando a um trabalho mental, pois devia-se ver esses velhos fantoches tanto com os olhos como com a memória; um teatro de fantoches banhado pelas cores imateriais dos anos, exteriorizando o Tempo, o Tempo que de hábito é invisível, que para deixar de sê-lo, procura corpos e, onde quer que os encontre, deles se apodera a fim de mostrar, acima deles sua lanterna mágica.”
Através de mudanças permanentes que percebemos criaturas observadas a intervalos demasiado grandes, e elas são tão diversas entre si! Verificamos ter seguido a mesma lei destas criaturas que se transformaram de tal maneira que já não se assemelham ao que foram outrora sem ter deixado de sê-lo, aliás, justamente por não terem deixado de sê-lo.
Algumas pessoas são, entretanto, identificáveis imediatamente, porém como retratos ruins delas mesmas, retratos reunidos numa exposição como se um artista mal-intencionado, o Tempo, endurecesse as feições de uns, retirasse o frescor da tez ou a leveza do talhe da outra, entristecendo seu olhar.
Comparando essas imagens às que estavam sob os olhos da memória, gostava-se sempre menos das que eram mostradas por último que aquelas das quais guardávamos reminiscências.
Havia ainda outras pessoas que, mesmo envoltas em rugas e cabelos brancos, mantinham em seus rostos rosados a jovialidade dos dezoito anos. O talhe era esbelto, a aparência do rosto, jovem. Mas quando deles nos aproximávamos distinguiam-se várias manchas em suas peles “que repugnavam” e as linhas de expressão não resistiam ao aumento causado pelas lentes. Outros ainda, não eram velhos, e sim rapazes de dezoito anos, apenas extremamente murchos.
As mulheres eram casos sempre especiais. As feições em que se gravara, se não a mocidade, ao menos a beleza, tendo esta desaparecido, elas procuravam com o que lhes sobrara, construir um novo rosto e em torno dessa nova feição fazer florescer uma mocidade nova.
Somente as mulheres muito bonitas ou muito feias é que não podiam acomodar-se a tais transformações.
As primeiras, esculpidas como um mármore de linhas definidas do qual nada mais se pode mudar, pulverizavam-se como estátuas.
As outras, que possuíam certas deformidades no rosto, tinham mesmo certas vantagens sobre as belas. Eram as únicas a serem reconhecidas de pronto, e por sempre terem sido feias ou aparentado determinados defeitos que as diferenciavam das demais, mantinham-nos e até mesmo pioravam com o tempo: essas nem pareciam ter envelhecido.
Assim, há mulheres que durante a sua vida, tal qual num conto de fadas, são condenadas a parecer primeiro uma mocinha de corpo escultural, depois feito uma espessa matrona, que se transforma, a seguir, numa velha trêmula, esquálida e encurvada.
Certos homens presentes no “baile” coxeavam, e logo se via não se tratar de nenhum acidente, pois como se diz, já possuíam um “pé na sepultura”.
As mulheres, meio paralíticas, pareciam não conseguir retirar totalmente o vestido que ficara preso à laje do túmulo, e, incapazes de se aprumarem, inclinadas como estavam, descreviam uma curva que era a sua posição atual entre a vida e a morte, antes da última queda.
Marcel, inclemente nos seus julgamentos, conclui que o ser humano pode sofrer metamorfoses como as de certos insetos, mas que elas serão sempre o reverso da borboleta ao libertar-se da crisálida. Pois “a velhice fizera desabrochar novos valores, as feições envelhecidas produziam sensações mais doces, as maldades dos jovens se agudizaram ou se desfizeram naqueles, agora, velhos”.
Pois quando ouvimos falar de um velho célebre, fiamo-nos previamente de sua bondade, sua justiça, sua doçura de alma; pois Marcel sentia que quarenta anos antes, eles haviam sido jovens terríveis cuja vaidade, velhacaria, soberba e astúcia, nada permitia supor que não as houvessem conservado.
O narrador de Em busca do Tempo Perdido cita como exemplo o sr. de Argencourt, que até parecia boa pessoa, mas que a falta de meios físicos era uma forma que o impedia de expressar que ainda era mau, por trás de sua perpétua hilaridade compulsiva.
Teria sido excessiva a comparação com um ator, e, destituído como estava de toda alma consciente, era um pouco um boneco trepidante com barba postiça de lã branca, que se agitava passeando pelo salão, tal qual num teatro de fantoches, uma advertência à vaidade de todos e de exemplo de história natural.
Por outro lado, em completo contraste, Marcel também teve a surpresa de conversar com homens e mulheres outrora insuportáveis, e que haviam perdido quase todos os seus defeitos, talvez porque a vida, frustrando ou realizando seus desejos, lhes extinguira a pretensão ou a amargura; quiçá o conhecimento lentamente adquirido de valores outros que aqueles em que acreditavam numa juventude frívola, permitiram-lhes suavizar o caráter, demonstrar suas qualidades. Estes, envelhecendo, pareciam ganhar nova personalidade, como as árvores que o outono, variando-lhe as cores, parece mudar-lhe a essência.
Neles, a velhice manifestara-se de fato, mas como algo moral.
Era como o que se denominava outrora um “panorama”, mas um panorama dos anos, a visão não de um momento, mas de uma pessoa situada na perspectiva deformante e, às vezes, apaziguadora do Tempo.