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A verdadeira linguagem da literatura

Um dos grandes escritores argentinos de sua geração, permanentemente preocupado com a composição e a decomposição da linguagem, o ato de escrever e o que isto pode significar, imagina que no futuro a literatura iria  além dos domínios muito circunscritos das tradições políticas e linguísticas.

*Ricardo Piglia

[email protected]

 

“Livros bonitos são escritos em uma espécie de língua estrangeira.” Marcel Proust, Contra Sainte-Beuve”

Então, se eu fosse obrigado a me definir em termos do que Saer estava pedindo, teria que pensar nas tradições regionais, entendo por encruzilhadas linguísticas regionais, nós culturais onde se encontra o peso de certas histórias e certas formas de narrar. De qualquer forma, a questão é até que ponto esses tipos de determinações são relevantes no caso da literatura. Até que ponto a literatura seria uma prática que ultrapassa as tradições e fronteiras nacionais e escapa dos espaços políticos? E se falamos da história futura, talvez tenhamos que pensar em um tipo de escrita que vai além dos domínios muito circunscritos das tradições políticas e linguísticas.

Uma utopia em que o tipo de linguagem gerado pela literatura é quase sua própria linguagem, que se afasta dos registros locais ou nacionais. O Finnegans Wake de Joyce apontava nessa direção, apesar de Joyce ser um escritor irlandês rancoroso e muito atento a tais tradições. Também poderíamos pensar a história futura como uma história que se constitui em outro tipo de linguagem. Uma linguagem que muda como a verdadeira linguagem da literatura. Um idioma que inesperadamente passa do espanhol para o inglês ou do inglês para o alemão. E talvez pudéssemos pensar em Finnegans como o primeiro texto que responde a esse tipo de possível movimento utópico de uma linguagem que seria finalmente a verdadeira linguagem da literatura. Uma linguagem que não seria trabalhada por cortes políticos e geográficos e que constituiria suas próprias tradições. Nesse sentido poderíamos imaginar a possibilidade da história futura.

Para uma história futura

Ricardo Piglia em Conversas com Juan José Saer

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O que a literatura faz na língua é mais manifesto: como diz Proust, ela traça nela precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um discurso regional recuperado, mas um devir-outro da língua, uma diminuição dessa língua maior. um delírio que se impõe, uma linha mágica que escapa ao sistema dominante. Kafka coloca na boca do campeão de natação: Falo a mesma língua que você, mas não entendo uma palavra do que você está dizendo. Criação sintática, estilo, assim é o futuro da linguagem: não há criação de palavras, não há neologismos válidos fora dos efeitos da sintaxe em que se desenvolvem.

Assim, a literatura já tem dois aspectos, na medida em que realiza uma decomposição ou destruição da língua materna, mas também a invenção de uma nova linguagem dentro da linguagem através da criação da sintaxe. «A única forma de defender a língua é atacá-la… Cada escritor é obrigado a fazer a sua própria língua…». Pode-se dizer que a linguagem é presa de um delírio que a obriga justamente a sair de seus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, decorre do fato de que uma língua estrangeira não pode ser esculpida na própria língua sem que toda a língua, por sua vez, se incline, se veja empurrada ao limite, para um fora ou para um lado de baixo constituído de Visões e Audições. que já não pertencem a nenhuma língua. Essas visões não são fantasias, mas Idéias autênticas que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios da linguagem. Não são interrupções do processo, mas seu lado externo.

O escritor como vidente e ouvinte, meta da literatura:
Estes são os três aspectos que estão perpetuamente em movimento em Artaud: a omissão de letras na decomposição da língua materna (R, T…); sua recuperação em uma nova sintaxe ou novos nomes com projeção sintática, criadores de uma linguagem (“eTReTé”); palavras-respiração, enfim, o limite assintático para o qual tende toda linguagem. E Céline, não podemos deixar de dizê-lo, por mais sumário que nos pareça: a Viagem ou a decomposição da língua materna; Morte a crédito e a nova sintaxe como linguagem dentro de uma linguagem; Banda do Guignole exclamações suspensas como limite da linguagem, das visões e dos sons explosivos.

Para escrever, pode ser necessário que a língua materna seja odiosa, mas de tal forma que uma criação sintática trace nela uma espécie de língua estrangeira, e que a língua como um todo revele seu aspecto externo, para além da sintaxe. Às vezes acontece que um escritor é parabenizado, mas ele sabe muito bem que está longe de ter chegado ao limite que se impôs e que se esvai incessantemente, ainda longe de ter concluído seu futuro. Escrever também está se tornando algo diferente de um escritor. Aos que lhe perguntam em que consiste a escrita, Virginia Woolf responde: Quem fala de escrita? Não o escritor, o que o preocupa é outra coisa.

Gilles Deleuze
Literatura e vida

Foto: Ricardo Piglia, falecido EM 2017