*Francisco Alexsandro Alves
Após 31 anos ausente do palco do Municipal do Rio de Janeiro, a ópera Don Giovanni, de Mozart, retorna. Mozart, e seu libretista, o abade Lorenzo da Ponte, nos conta a história de Don Juan, nobre espanhol que vandaliza as instituições de seu tempo, sobretudo o casamento. Leporello, servo de Giovanni, na verdade, sua sombra, mantém um catálogo com os nomes de todas as mulheres que seu amo conquistou. Só na Espanha são 1003 mulheres. De todas as classes sociais, etnias, idades… Mas a preferida do Don é a mocinha virgem de 15 anos, que pode ensinar e proteger e, sobretudo, roubar da proteção paterna. Após deflorar suas conquistas, Don Giovanni as abandona. Ao final da ópera, em uma cena de tirar o fôlego, o pai de uma das mulheres defloradas por Giovanni, que foi assassinado pelo Don, reaparece, vindo do outro mundo para levar o conquistador para o inferno.
Essa obra mozartiana, uma comédia cinzenta, como é comumente denominada, foi idolatrada pelos românticos. Eles viam na figura do nobre a própria encarnação do ideário demoníaco de seu tempo, um homem sem apego às tradições, sem qualquer vínculo moral para com Deus ou o Estado, vivendo, como o personagem afirma: “para o vinho e para a carne”. Porém, essa figura de herói revolucionário do personagem foi perdida em nosso tempo. Sobretudo nessa versão carioca, em que ao final são exibidas imagens de relatórios que mostram a crescente onda de feminicídio. Agora, Giovanni é apenas um homem machista que abusa das mulheres e, sendo assim, ao final da ópera, ouviu-se o teatro inteiro bradar “fora, Bolsonaro”. Eu fiquei curiosíssimo para entender, então, a partir dessa interpretação do personagem, de herói para estuprador, determinadas cenas.
Por exemplo. A cena inicial em que Giovanni, após possuir Donna Anna, mata seu pai, que flagrou a cena. Ora, se foi um estupro, como explicar a obsessão da personagem pelo conquistador? Obsessão essa que a faz zombar do noivo, Don Otávio, várias vezes, mentindo para ele. Inclusive no final, quando demônios comandados pelo pai de Donna Anna arrastam Giovanni para as profundezas. Don Otávio então diz para sua noiva: “Donna Anna, agora vamos nos casar!”, porém ela responde: “Ah, querido, me dê mais um ano!” Ou então Donna Elvira: “Vou para o convento e acabar com minha vida!” Parece que a vida sem o libertino é chata e tediosa e o casamento nem se compara ao prazer de quebrar as normas. É como se todos, ao final, sentissem falta da zombaria social, religiosa e política que o pervertido e libertino representava.
Por isso é bastante dúbia a identificação desse personagem com o atual presidente do Brasil. Porque Giovanni, ao longo de sua jornada, é mais amado do que odiado. De fato, ele é um mulherengo que zomba das mulheres em várias cenas. A mais famosa, depois do estupro de Zerlina (único estupro de fato na obra), é aquela em que o nobre disfarça seu servo Leporello com suas roupas e ordena que o servo reconquiste Donna Elvira, enquanto, por sua vez, ele leva a empregada de Elvira para a cama. Giovanni já havia dormido com Elvira antes, esta jurou nunca mais fazê-lo, após a descoberta do estilo de vida de seu ex-amante. Giovanni também usa armas em vários momentos da trama, assim como também possui subordinados que dão uma surra em Masetto, esposo de Zerlina, enquanto esta é estuprada por Giovanni.
E mesmo assim, o entorno de Giovanni o idolatra…