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Alexandre, o Grande, da Netflix

Nova série da Netflix repete a polêmica criada em torno de Cleópatra. Desta vez, é com o grande general Alexandre Magno.

*Alexsandro Alves

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I.

A Netflix soltou mais outra bomba com potencial de muita polêmica. Depois da Cleópatra negra, agora é a vez de Alexandre Magno, o Grande, causar polêmica por conta de seus relacionamentos amorosos, ou não. Mas é disso que a indústria cultural se alimenta, de polêmicas.

Por conta de uma série da Netflix sobre Alexandre III, da Macedônia (356 a.C. – 323 a.C.), agora a moda é se perguntar se o grande general, o maior homem da Antiguidade (nunca perdeu uma batalha), seria gay.

A beleza eterna de Alexandre Magno em uma escultura do museu de Istambul

 

Para além dessa polêmica que é, como tudo na mídia, purpurina passageira, o mais correto seria buscarmos compreender como era a relação do grego antigo com o seu corpo e com o corpo do outro. Se o grande general era amante de Heféstio? Eu imagino que não. As conclusões nunca são conclusivas quando se tratam desse assunto entre os gregos; a única menção mais picante sobre essa amizade foi feita pelo filósofo Diógenes, dos cínicos. Mas ele era inimigo de Alexandre: os cínicos não apreciavam conquistadores e nem campanhas militares. Para zombar de Alexandre, o filósofo desferiu a seguinte frase: Alexandre nunca foi derrotado, a não ser pelas coxas de Heféstio.

Uma frase assim pode suscitar muitas interpretações, mas seu contexto foi de intriga entre o filósofo e o grande general, e devemos atentar que Diógenes não gostava de Alexandre, o que torna essa frase mais uma zombaria do que um elogio.

Mas se a Netflix exagera para polemizar, como a homoafetividade era tratada entre os gregos antigos? Ela existia? Era praticada? Ou mesmo estimulada?

Sim, para todas as questões. Mas precisamos ir com calma porque, diferente do que querem alguns, sobretudo a militância, não era nenhuma parada do orgulho. Todavia, a militância está mais correta do que os que estão negando a realidade do amor entre homens entre os gregos antigos; se por um lado a militância entrou em modo delírio coletivo, por outro, os que negam esse dado histórico se comportam de maneira inequivocamente não histórica, o que é pior do que o exagero.

Os dados que elencarei no próximo ponto podem ser encontrados nos livros Paideia, de Werner Jaeger e, principalmente, em A homossexualidade na Grécia Antiga, de K. J. Dover. São obras monumentais e clássicas quando o assunto é homoafetividade e educação entre os gregos antigos.

 

 

II.

Por que trago para essa questão a educação entre os gregos antigos? Porque muito do contexto homoafetivo entre os antigos helenos se dava entre um homem e um menino.  Relações sexuais entre dois homens adultos eram interditadas legalmente – por isso é difícil uma relação entre Alexandre e Hefeístos, eram já adultos (esse entendimento é sobre o gênero masculino; o feminino não é amplamente estudado nos livros supracitados).

Havia leis que determinavam o momento e a maneira como essa relação deveria ocorrer.

Basicamente, um menino iniciava sua preparação à vida adulta aos 12 anos. Nessa idade, um tutor, denominado pederasta (do grego παιδεραστία, lê-se paiderastía, ensinar a criança), era escolhido pelo pai do menino para ensinar a seu filho política, oratória, poesia, música, teatro, esportes e outras disciplinas relevantes para aquele período, inclusive guerra. A gravura abaixo mostra um momento de uma aula, de um vaso grego preservado.

 

A convivência entre o professor e o aluno era marcada por muitos altos e baixos. Dover escreve que havia esse componente erótico pelo corpo do menino, porém o professor deveria manter recato em seu comportamento. Embora permitido, o relacionamento sexual  só aconteceria caso o menor concordasse. Caso o menino não concordasse e o professor insistisse, o pai poderia contratar os serviços de um guarda-costas para acompanhar seu filho, era o pedagogo (do grego παιδαγωγός, lê-se paidagogós, condutor da criança).

Até que chegasse a esse ponto, muita poesia já havia sido escrita e entregue pelo professor para seu aluno. Uma tradição desse período consistia em presentear o menino com um galo, símbolo do interesse sexual, como na gravura abaixo, que mostra um garoto segurando um galo, de um vaso grego preservado:

 

Esse comportamento, em dado momento clássico, foi proibido legalmente, porque acabava, quase sempre, em rapto da criança pelo professor. Inclusive o mito de Ganimedes, que foi raptado por Zeus quando menino e levado para o Olimpo, foi proibido de ser narrado – era uma das motivações para o rapto. Abaixo, O rapto de Ganimedes, de Correggio, pintado 1532.

 

À medida que o menino crescia, mais autonomia lhe era imputada e seu papel sexual era modificado.

Dos 12 aos 17 anos, ele era a parte passiva da relação; dos 18 aos 20, poderia ser o ativo, mas continuava passivo; mas a partir dos 21, deveria, apenas ser ativo, e com mulher.

Ou seja, a partir da idade de 21 anos, o relacionamento sexual entre iguais não era mais possível, ao menos legalmente falando. E o jovem, agora adulto, deveria casar, de preferência antes dos 30 anos.

Caso o homem, já adulto, permanecesse com o comportamento homoafetivo, poderia sofrer penas nos tribunais. O texto de Dover inicia exatamente com um desses julgamentos. Um cidadão grego foi descoberto mantendo relações sexuais com outro homem e, para piorar sua situação, com um não grego. Além de incorrer em crimes sexuais, também foi julgado por traição. Foi expulso de sua cidade-estado e humilhado publicamente.

A humilhação se deu porque se descobriu que o criminoso era o ente passivo da relação! Ou seja, não possuía a virilidade masculina amplamente exigida entre os gregos a partir dos 21 anos de idade.

Percebam como era um código bastante rígido a expressão desse tipo de amor.

Mesmo nos casos permitidos (homem e jovem), o adulto jamais poderia ser passivo. Era coisa de mulher.

E disso decorre também um outro dado: o ativo, denominado erastes (do grego ἐραστής, lê-se erastís, amante), não poderia de fato penetrar o menino, denominado eromenos (do grego ἐρώμενος, lê-se erómenos, amado).

Os gregos possuíam aversão ao ânus e, também, ao sexo oral.

O que era praticado era o sexo intrafemoral, como na gravura abaixo, de um vaso grego preservado:

 

 

O erastes sentava-se e o eromenos, sentado em seu colo, posicionava suas coxas, de modo que o pênis do professor ficava entre elas. Não havia penetração anal, oficialmente falando.

 

III.

Esses dados nos permitem afirmar que sim, a homoafetividade era institucionalizada na Grécia Antiga; mas se esquecem, ou não sabem, que essa institucionalização, evidente, implicou em legislação e interdição de comportamentos indesejados.

Uma vez eu vi uma ilustração que mostrava dois gregos, um adulto e outro mais jovem, aquele encostava, em público, seu pênis ereto nas nádegas deste; não era assim. Não era uma parada do orgulho.

Além de ser um comportamento regulado legalmente, não era para qualquer homem. Apenas para o grego de família aristocrática, mesmo porque a Paideia (do grego παιδεία, lê-se paideía, formação da criança), a educação total do menino, está ligada ao conceito de areté (do grego ἀρετή, lê-se aretí, virtude) a excelência baseada em virtudes morais inquebrantáveis. Tanto a Paideia quanto a areté possuem um sentido de nobreza que se estabelece no indivíduo pela educação e apenas a classe aristocrática grega era educada.

Também foi um comportamento que variou muito em sua aceitação pelos filósofos e artistas. Conta-se que Sócrates negou todas as investidas de alguns de seus alunos; Platão, no escritos iniciais, apoia essa relação. Porém, na República, condena-o, afirmando se tratar de antinatureza. Xenofante nutria desconfiança em relação ao assunto, chegando ao ponto de também classificá-lo como antinatural. O comediante Aristófanes, em sua peça As nuvens, descreve a decadência da educação grega a partir da instituição da pederastia. Numa cena impagável, o pai de um aluno vai à escola de Sócrates, que é um dos personagens da peça, no caso, o professor, reclamar de que não está gostando da educação do filho. Quando chega na escola, encontra os alunos de quatro com seus bumbuns à mostra empinados para as nuvens, enquanto Sócrates, muito atento, os observa.

Aristóteles, que foi professor de Alexandre, assim como de Heféstio, parece sublimar qualquer relação sexual entre homens em uma profunda e sólida amizade, baseada na admiração e no respeito recíproco entre as partes. De fato, a amizade masculina será muito louvada por esse filósofo.

Por isso que é mais provável que Alexandre e Heféstio tivessem mesmo uma amizade muito espiritualizada e profunda, uma admiração entre homens virtuosos e viris que, evidentemente, não dispensava a admiração do corpo e da presença marcante dele, mas que não chegava ao ato sexual em si.

Além disso, a questão da orientação sexual é uma preocupação moderna e desconhecida pelos gregos antigos. Não havia nenhuma militância e o termo gay, com significados políticos, só apareceria através da obra de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, no século XX.  O exército sagrado de Tebas, que Alexandre derrota, portanto, não era gay