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Algumas palavras para a minha Avó

Em seu discurso para a entrega da Medalha do Mérito Cultural, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, o escritor e jornalista Franklin Jorge, rememora sua maior influência, a sua amada Avó. A medalha é para ela.

*Franklin Jorge

[email protected]

 

 

A caminho dos roçados, na antemanhã fresca e salubre, enaltecia-me a minha Avó que se fazia necessário viver para amealhar experiências e méritos; e instruía-me no conhecimento dos clássicos greco-latinos, no Humanismo e em saberes populares transmitidos por gerações.

Por isto, aqui, começo por lembrá-la, em gratidão por guiar aquele menino rural que fui antigamente, a trilhar o árduo e surpreendente caminho que me trouxe até essa Casa Legislativa, cujas portas me foram inesperada e generosamente abertas pelo deputado José Dias, parlamentar que se destaca entre os seus pares por sua coragem à serviço da nossa terra e da brava gente potiguar; um homem de cultura e gostos refinados, fiel à palavra empenhada e a reconhecida defesa de suas convicções e compromissos democráticos.

De minha Avó ouvi minhas primeiras cantigas e meus primeiros contos e histórias, embalados por sua bela e impressiva voz de contralto. Sabia que, na primavera dos meus primeiros dois anos, ela costumava colocar-me de pé sobre uma cadeira à cabeceira da comprida mesa de cedro, postava-se atrás de mim e colocava a Parker 51 em minha pequena mão, fechando-a em torno da caneta, a minha mão entre a sua e, em seguida, o som querido de sua voz: vamos escrever para a mamãe de Lages, e ditava em voz alta e clara os termos da carta cheia de boas notícias, de novidades, conselhos e sugestões, e quanto desejávamos tê-la aqui, com o meu pai. Ensinou-me as primeiras letras, a ler e a escrever, usando como dispositivo didático e experimental o Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, que assinávamos e chegavam ao Estevão, trazidos a cada três meses por seu Eloy, em seu famoso Jeep. Uma didática dinâmica e funcional, como viria a interpretar e entendê-la, anos depois, com a maturidade que nos confere a experiência.

Embalava-me, cantando antigas e tradicionais cantigas de ninar, brasileiras, portuguesas e francesas; nossos modinheiros e, mais tarde, Catulo da Paixão Cearense e Luiz Gonzaga, em sua voz densa e profunda; grave, de brilho escuro, como uma noite de lua. Como sabemos, nas óperas, a voz de contralto, quase sempre, é para mulheres sábias, deusas ou feiticeiras, ensina-me meu bom amigo, escritor e erudito Alexsandro Alves, editor da revista digital www.navegos.com.br, aqui presente. Carmen, de Bizet, é contralto; Erda, a deusa da terra e da sabedoria nórdica, no Anel wagneriano, é contralto; contralto é a bruxa Ulrica, no Macbeth, de Verdi. Mas como é uma voz rara, mezzo-sopranos costumam cantá-los.

Se esta medalha me é motivo de profundo orgulho, mas não orgulho de vaidade vã, para registrar aqui as palavras desse jovem grande escritor, o autor potiguar mais importante de sua geração, segundo creio; orgulho, diria, de ter construído uma trajetória literária desafiadas por dificuldades vencidas; instruída e animada pela convicção imperturbável de ter desejado sempre, através da criação de uma obra, aumentar a força dessa cultura em tudo o que tem de bom, belo e virtuoso.

Esta medalha é de uma mulher modesta, estoica, paciente, sábia, instruída e criteriosa. Minha Avó, Amélia Cruz da Fonseca.

 

 

Natal, 12 de Dezembro de 2023.

 

 

NOTA: embora escrito, o discurso não foi proferido, devido ao tempo escasso.