*Alexsandro Alves
Enquanto escrevia esse artigo https://navegos.com.br/renascimento-da-tragedia-ou-sua-morte/ o pensamento também rondava por uma outra obra, a Carmen, de Bizet. É quase inevitável quando se fala em tragédia em Wagner e Nietzsche não lembrar da Carmen porque o filósofo fez uma afirmação jocosa e que não deve ser levada muito a sério: Nietzsche afirmou que Carmen seria um antídoto contra Wagner.
De um certo ponto de vista essa afirmação pode ter algum sentido, por conta do ritmo pulsante que permeia as cenas de centrais da obra-prima de Bizet. Conforme sabemos, a variedade rítmica não é uma preocupação constante na obra wagneriana. Mas essa afirmação de Nietzsche tem levado a muitas conclusões que eu não creio estarem corretas.
Basicamente, esquecem que o filósofo também afirmou que era uma piada, uma brincadeira, apenas feita para zombar de seu antigo mestre, de quem se separara com muito amargor e sentimentos não resolvidos. Mas se deixarmos esse detalhe de lado, de que era uma brincadeira, podemos afirmar que Carmen de fato é uma obra trágica?
Talvez não.
Os personagens centrais, Carmen e Don José, não têm origem na nobreza, são proletariados; na tragédia, os personagens são reis ou filhos dos deuses. Claro que esse detalhe é insignificante, mas é um dado que precisa ser escrito. A questão mesmo é o desenvolvimento deles que não segue uma lógica trágica nos detalhes.
Há sempre um inocência nos personagens trágicos e é isso o que torna suas ações tão catárticas: eles são punidos por algo que não fizeram conscientemente, são como brinquedos do destino, sem controle pelas ações mas que pagam de maneira terrível por elas, nós nos identificamos com eles pois em sua mais absoluta miséria, são inocentes.
Não é o que ocorre, por exemplo, com Don José, cujo ato final foi celebrado por Nietzsche. Nietzsche louvou o assassinato de Carmen por Don José e a subsequente confissão da culpa por ele, como uma demonstração do amor fati (o amor ao destino). Na prática, em cena testemunhamos um homem que vai cobrar amor de uma mulher que não o ama mais.
Ela tem outro.
Don José se humilha. É um homem inteiramente aos pedaços. Ele persegue Carmen para que ela volte, para que ela abandone seu novo amante assim como ele abandonou sua noiva, sua mãe, seu emprego, se tornou bandido, tudo por Carmen. Mas Carmen desdenha de tudo isso. Ela age sem a mínima empatia pelo sofrimento que a história entre eles causou. Mas há um detalhe.
Don José trouxe uma faca. Ou seja, ele premeditou o assassinato de Carmen caso ela não voltasse para ele. Não há como haver identificação com esse personagem. Nem com Carmen. Falta inocência em ambos. Eles não agem tragicamente. O destino, que na tragédia vitima os personagens, não tem lugar, da mesma forma, aqui.
Porque Don José escolhe esse destino. Ao perceber que seu mundo acabou, ele arruma um culpado, uma culpada, no caso. Ele não assume sua liberdade de escolha ao mesmo tempo em que falsamente diz que é inocente, que foi vítima. Ele não assume a culpa de ser livre para escolher. Matar Carmen não é perder a liberdade porque agora ele será encarcerado.
É mais problemático.
A frase final de Don José: “Sim, eu a matei, eu matei minha adorada Carmen!”, não é uma declaração de aceitação do trágico, é apenas uma constatação de um criminoso que, por ter perdido tudo: noiva, amante, família, emprego, respeito, também decidiu destruir aquela que, em sua visão, é culpada pelos atos dele!
O personagem trágico assume a culpa até quando não tem. E este, definitivamente, não é o caso aqui. Imagino que Nietzsche soubesse disso. O amor fati , que ele clama aqui como um grande exemplo, não pode ser, repito, confundido com tragédia. É fácil confundir porque o personagem trágico aceita seu destino, seja ele qual for.
Porém, nos detalhes se desenha algo não muito dentro da tragédia. Talvez novamente tenhamos o mesmo problema do final da Valquíria, o zeitgeist. No entanto, em Bizet não há o mesmo refinamento dramático da obra wagneriana. Abaixo, um vídeo com a cena em questão, o encontro final e fatal entre os personagens Carmen e Don José. Produção do Teatro Guaíra, 2009.